A América antiaborto regressa em força com um empurrão de Trump

O estado do Alabama aprovou uma lei que proíbe o aborto em qualquer fase da gravidez, sem excluir casos de violação ou incesto. O objectivo é claro: forçar o Supremo Tribunal, agora mais conservador, a esvaziar uma decisão de 1973 que anulou muitas restrições.

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Defensores da liberdade de escolha manifestam-se no Alabama Chris Aluka Berry/REUTERS

Há cinco anos, quando o Partido Republicano quis proibir o aborto no Alabama a partir do momento em que fosse possível ouvir “o batimento cardíaco do feto” – o que barrava a prática a partir das seis ou sete semanas de gravidez –, a proposta fracassou por pouco e caiu no Senado. Mas os republicanos não desistiram da sua luta antiaborto e, esta semana, tiveram a primeira vitória com uma proposta ainda mais restritiva: se a nova lei entrar em vigor, o aborto será proibido em qualquer fase da gravidez, sem excepções para violação e incesto, e os profissionais de saúde que o fizerem podem ser condenados a 99 anos de prisão.

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Há cinco anos, quando o Partido Republicano quis proibir o aborto no Alabama a partir do momento em que fosse possível ouvir “o batimento cardíaco do feto” – o que barrava a prática a partir das seis ou sete semanas de gravidez –, a proposta fracassou por pouco e caiu no Senado. Mas os republicanos não desistiram da sua luta antiaborto e, esta semana, tiveram a primeira vitória com uma proposta ainda mais restritiva: se a nova lei entrar em vigor, o aborto será proibido em qualquer fase da gravidez, sem excepções para violação e incesto, e os profissionais de saúde que o fizerem podem ser condenados a 99 anos de prisão.

A lei ainda não foi promulgada pela governadora do Alabama, a republicana Kay Ivey – uma conhecida defensora da proibição total do aborto –, e dificilmente sobreviverá aos processos em tribunal prometidos pelos defensores da liberdade de escolha.

Mas para se perceber a dimensão do músculo que o movimento antiaborto ganhou nos EUA nos últimos anos, não basta olhar para o caso do Alabama, ainda que a proposta de lei aprovada naquele estado, na terça-feira, seja descrita pelos críticos como a mais restritiva dos últimos 50 anos em todo o país – atribui personalidade jurídica ao feto desde o momento da concepção, e não a partir do nascimento completo e com vida, e apenas permite o aborto quando a vida da grávida estiver em perigo.

Só este ano, quatro outros estados norte-americanos aprovaram leis muito restritivas, e em 12 foram discutidas propostas semelhantes no auge de uma nova fase na luta contra o aborto, impulsionada pela chegada à Casa Branca de Donald Trump e do seu vice-presidente, Mike Pence, em Janeiro de 2017. Uma mudança política que já fez chegar ao Supremo Tribunal e aos tribunais federais vários juízes com um passado de decisões antiaborto.

Em estados como a Georgia, Kentucky, Mississippi e Ohio, os congressos locais aprovaram novas leis que proíbem o aborto a partir do momento em que for possível detectar “o batimento cardíaco de um feto”, o que baixa para apenas seis ou sete semanas a janela legal – numa altura em que muitas mulheres não sabem ainda que estão grávidas.

Há diferenças entre as várias propostas – no caso do Ohio, por exemplo, a lei não prevê excepções para casos de violação e incesto, à imagem do que acontece no Alabama; a Georgia prevê excepções para violação e incesto, mas os casos de violação só são considerados se houver uma queixa na polícia, o que dificulta ainda mais o acesso das mulheres a cuidados de saúde em ambiente seguro.

Nenhuma das propostas aprovadas está em vigor, e todas elas têm um chumbo garantido assim que chegarem aos tribunais. Foi isso que aconteceu no Kentucky, e é isso que acontecerá nos outros estados, incluindo o Alabama, onde a maioria do Partido Republicano nos congressos locais tem endurecido a sua posição antiaborto nos últimos anos.

De olhos no Supremo

Os olhos dos defensores da proibição total do aborto nos EUA estão no Supremo Tribunal, e não no futuro imediato dos seus próprios estados. É consensual que pouco ou nada irá mudar nos próximos tempos, e que os tribunais vão continuar a aplicar a famosa decisão “Roe contra Wade”, de 1973, que proíbe os estados de aplicarem leis antiaborto muito restritivas – mas isso pode mudar nos próximos anos, principalmente se o Presidente Trump for reeleito em Novembro de 2020 e se continuar a nomear juízes conhecidos pelas suas posições antiaborto para os tribunais americanos, incluindo o Supremo.

“O objectivo desta lei é confrontar a decisão dos tribunais de 1973, segundo a qual um bebé no útero não é uma pessoa”, reconheceu o republicano Terri Collins, da Câmara dos Representantes do Alabama, ouvido pelo jornal Montgomery Advertiser. “Esta lei contesta essa questão em particular. O bebé que está no útero é uma pessoa? Eu acredito que a nossa lei diz que sim. Acredito que o nosso povo diz que sim. E acredito que a tecnologia diz que sim.”

É por isso que os republicanos do Alabama insistiram em aprovar uma lei sem excepções para casos de violação e incesto – porque é isso que pode convencer o Supremo Tribunal a aceitar o caso e, quem sabe, fazer uma interpretação que esvazie grande parte da decisão “Roe”.

Até agora, os juízes do Supremo têm evitado qualquer discussão sobre o aborto, e a recente sucessão de leis restritivas não veio mudar esse posicionamento – ao todo, há 13 casos que já esgotaram todos os recursos e que poderiam ser avaliados pelo Supremo, se a maioria do tribunal estivesse interessada em forçar mudanças radicais.

“Acho que estas leis, só por si, não põem em causa a decisão porque são extremistas” disse à revista New Yorker Linda Greenhouse, uma jornalista que escreveu sobre as decisões do Supremo norte-americano durante décadas e autora de uma biografia do juiz Harry Blackmun, o responsável pela célebre decisão de 1973.

“A decisão ‘Roe Contra Wade’ vai ser posta em causa por medidas mais suaves, que vão dar aos tribunais cobertura para não passarem por extremistas, ainda que essas leis possam ter consequências extremas na destruição da infra-estrutura do aborto e no corte do acesso à maioria das mulheres.”

Os juízes de Trump

Um dos exemplos mais citados é uma lei aprovada no Louisiana, cuja entrada em vigor foi suspensa – mas não travada de forma definitiva – em Fevereiro pelo Supremo Tribunal. Neste caso, os legisladores do Partido Republicano exigiram aos médicos das clínicas de aborto do estado que tenham privilégio de admissão nos hospitais locais – o direito, por exemplo, a internar pacientes, mesmo não sendo funcionários desses hospitais.

“À primeira vista, essa lei oferece mais protecção, porque declara que está a contribuir para a melhoria dos cuidados de saúde das mulheres. Não tem nada que ver com a saúde das mulheres, mas é uma questão mais simpática para o Supremo”, considera Linda Greenhouse. Ou seja, se os juízes nomeados pelo Presidente Trump vierem a aprovar leis que acabem por restringir o acesso ao aborto, o mais provável é que essas leis tenham como objectivo dificultar o acesso e não proibir a prática de uma forma radical como pretendem as leis do Alabama, do Ohio ou do Kentucky.

O caso da lei do Louisiana (e do Indiana) é importante para se perceber o futuro desta discussão nos EUA, porque o Supremo Tribunal já se pronunciou sobre uma lei semelhante, aprovada no Texas – os juízes travaram essa lei em 2016, numa vitória para os defensores da liberdade de escolha, mas essa votação aconteceu antes da chegada ao Supremo de Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh, dois juízes com um passado de decisões antiaborto nomeados por Donald Trump.

Na altura, a decisão do Supremo foi aprovada com cinco votos a favor e três contra (Antonin Scalia, que morreu em Fevereiro desse ano, ainda não tinha sido substituído). Se o Supremo aceitar o caso da lei do Louisiana nos próximos anos, a decisão poderá ser muito diferente, já que na composição actual há cinco juízes mais identificados com a proibição do aborto. E se a maioria decidir que os médicos podem ser obrigados a ter privilégio de admissão nos hospitais para fazerem abortos, muitos estados vão aproveitar para aprovar essa lei, o que levará ao encerramento de muitas clínicas – e tudo sem derrubar a decisão "Roe Contra Wade” de um só golpe.

Do outro lado da discussão, os grupos que defendem a liberdade de escolha estão também a preparar-se para um possível futuro sem a decisão de 1973, lutando pela aprovação de leis ainda mais permissivas, como está a acontecer em estados mais progressistas como Nova Iorque. Se a lei federal mudar, e se os estados norte-americanos passarem a ter liberdade quase total para dificultarem o acesso aos cuidados de saúde relacionados com o aborto, a distância entre os opositores e os defensores ficará ainda maior, uma tendência que parece registar-se em outras áreas da sociedade norte-americana.

“Num mundo pós-'Roe’, devemos esperar uma grande variedade de abordagens ao aborto nos estados. Mas parece ser cada vez mais evidente que os políticos falam para quem se interessa mais por um determinado assunto, mesmo que as suas opiniões divirjam muito daquilo em que a maioria dos americanos acredita”, disse Mary Ziegler, professora de Direito na Universidade da Florida, num artigo publicado em Abril no jornal Washington Post que termina com o vislumbre de um futuro conflituoso: “Durante décadas após a decisão Roe, os dois lados lutaram para conquistar os corações dos que estão no chamado ‘centro indeciso’. Na era de Trump, parece que esses eleitores vão voltar a ser deixados para trás.”