A Balada de Hill Street, o consumo de informação e a sobrevivência da democracia
Tal qual ninguém espera que a bica seja oferecida e nem por isso deixa de a tomar, também os jornais devem ser pagos por todos nós sem que isso signifique que deixemos de os ler. Porque, afinal, somos nós e a nossa forma de vida que, em última instância, estão em causa.
Nos tempos da saudosa Balada de Hill Street, intrigava-me ver as pessoas a saírem dos cafés e a retirarem jornais de caixas metálicas colocadas na rua. Nunca percebi aquela liberdade muito civilizada de retirar um jornal de um local de acesso irrestrito. A Internet era então apenas um projecto universitário longe de se tornar uma realidade massificada e os conteúdos informativos estavam apenas disponíveis através da televisão, da rádio e dos jornais em papel.
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Nos tempos da saudosa Balada de Hill Street, intrigava-me ver as pessoas a saírem dos cafés e a retirarem jornais de caixas metálicas colocadas na rua. Nunca percebi aquela liberdade muito civilizada de retirar um jornal de um local de acesso irrestrito. A Internet era então apenas um projecto universitário longe de se tornar uma realidade massificada e os conteúdos informativos estavam apenas disponíveis através da televisão, da rádio e dos jornais em papel.
Quarenta anos depois, a realidade é a que é, tendo-se tornado vulgar, não propriamente retirar jornais de caixas espalhadas pelas ruas, mas sim descarregar gratuitamente conteúdos informativos, seja directamente nos sítios web dos órgãos de comunicação social, seja por via de “news providers”. De facto, sem se gastar um cêntimo, passou a ser possível aceder a tais conteúdos por meio das plataformas electrónicas que utilizamos no dia-a-dia, sem que sequer exerçamos a opção de querer ou não o que nos é enviado e sem que tenhamos controlo sobre o respectivo conteúdo. Passou, pois, a interessar menos quem escreve o quê e qual o veículo por que o faz – qual o jornal ou revista que suporta o conteúdo –, valorizando-se, antes, a pluralidade e a diversificação das fontes e o acesso automático, indiscriminado e gratuito que os novos meios possibilitam.
Por outro lado, instalou-se a ideia de que o acesso a conteúdos é, por definição, gratuito e irrestrito, sem, naturalmente, estarmos dispostos a aceitar que isso possa comprometer o rigor e a qualidade da informação. Há tempos atrás, recebi um link no WhatsApp com acesso livre e permanente a diversas publicações de referência portuguesas e estrangeiras, entre jornais diários, semanários e revistas. Ao ter-me recusado a aproveitar a benesse e expressado o meu desacordo quanto à utilização e subsequente divulgação do referido link, pude observar o espanto nos meus interlocutores que concluí nunca terem parado para pensar nas consequências da utilização e divulgação daquilo.
De igual modo, há alguns meses, fui surpreendido pela indignação de um dos meus filhos porque a Internet ia acabar, já que ia deixar de ser possível divulgar livremente informação e conteúdos. Referia-se ao famigerado “artigo 13” (que passou a 17 na Directiva aprovada pelo Parlamento Europeu), o qual, ao contrário do que foi propalado por bloggers, youtubers e, sobretudo, pela Google e pelo Facebook na qualidade de principais afectados pela medida, não visa dar cabo da liberdade de expressão na Internet e muito menos instituir um qualquer mecanismo censório através do qual as pessoas deixem de ter acesso a informação, mas tão apenas criar mecanismos que protejam os autores e criadores de conteúdos, através, nomeadamente, do pagamento do seu trabalho, que pode, sem o saberem, ser divulgado no mundo inteiro gratuitamente. No limite do absurdo, tal como as coisas estão presentemente, um artigo de um jornalista profissional pode ser publicado e divulgado sem que o jornal que o deu a conhecer tenha gerado um só cêntimo de receita, já que a divulgação se fez não através das suas vendas, mas pela propagação livre e global através de feeds ou de links. Ora, aceitar que assim seja é, inevitavelmente, condenar à morte os meios de comunicação livres e independentes.
O britânico The Guardian, que tem uma política de total abertura de conteúdos com pedidos de contribuições voluntárias aos seus leitores, divulgou ter conseguido cumprir a meta que traçara para o triénio 2016-2019, atingindo o break even operacional por ter convencido parte dos seus leitores a contribuírem financeiramente. Por cá, os números recentemente divulgados pela Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação parecem indicar um aumento relativo das assinaturas digitais de alguns dos jornais diários e semanais, porém ainda insuficiente para os sustentar financeiramente.
Chegou, assim, o momento de reflectir, regular e realinhar os legítimos interesses de todos, sem que isso seja visto como um retrocesso civilizacional – algo que não é, desde logo, evidente sobretudo para as gerações mais novas que nunca viveram sob outro paradigma. É incontestável que a Internet e o digital vieram alterar para sempre a forma como se propaga a informação. No entanto, cabe a cada um de nós, responsavelmente e sem abdicar destes novos meios e do que de bom eles potenciam, tudo fazer para que a imprensa livre, independente e autónoma subsista e (re)encontre o seu lugar. Temos de pensar criticamente sobre a forma como acedemos às notícias e nos relacionamos com a sua utilização e divulgação, recusando deliberadamente o uso gratuito em detrimento do pago só porque é mais cómodo, declinando responsavelmente a divulgação de notícias falsas por mera curiosidade do que é absurdo e rejeitando tudo o que possa contribuir para o enfraquecimento dos órgãos de comunicação social, em especial dos jornais e revistas que reputamos de referência. Não é exagero dizer que, se queremos continuar a viver em democracias pluralistas, somos convocados a lutar pela preservação e fortalecimento de uma imprensa independente e livre, o que impõe uma consciência dos nossos comportamentos na utilização das novas tecnologias de uso e na divulgação de conteúdos.
Também nós precisamos de mudar de paradigma na forma como encaramos esta questão: se há anos atrás não se conhecia o conceito de fake news (não ignorando embora os meios de propaganda que sempre existiram), a sua escala global e os seus efeitos impelem-nos à acção: não chega alimentarmo-nos de feeds ou de mensagens cheias de links para conteúdos que outros seleccionaram grande parte das vezes não obedecendo a qualquer critério prévio; pelo contrário, temos de procurar fortalecer e, em muitos casos, salvar quem trabalha diariamente para nos informar e pôr a pensar criticamente sobre o que se vai passando no mundo, ainda que tal possa parecer-nos distante e irrelevante. Isso só se faz participando como utilizadores-pagadores, clientes habituais, espectadores atentos e participativos. Não basta ver, partilhar e deitar fora. Temos de fazer mais do que isso. Tal qual ninguém espera que a bica seja oferecida e nem por isso deixa de a tomar, também os jornais devem ser pagos por todos nós sem que isso signifique que deixemos de os ler. Porque, afinal, somos nós e a nossa forma de vida que, em última instância, estão em causa.