Os exames, essa dor de cabeça, de barriga, de costas…
A época dos exames, a mim, dava-me para engordar. Tenho o fígado feito num oito, sei-o hoje porquê. A M. bebia litros de café, a J. fumava cigarro atrás de cigarro, a C. não dormia de noite. “Não haverá outra maneira de os professores nos avaliarem?”
Primeiro arrumava a secretária, encontrava coisas de que não me lembrava que tinha guardado, podia ficar perdida em papéis e recordações durante horas. Depois de tudo preparado para começar a estudar, a minha peregrinação começava. Levantava-me, ia até à cozinha, abria o armário das bolachas e dos cereais, escolhia o que queria e voltava para o quarto. Folheava um monte de fotocópias assinaladas com marcador fluorescente e post-it coloridos. Regressava à cozinha e decidia que o melhor era levar logo um prato para o quarto com cinco ou seis bolachas ou o pacote inteiro, que devorava num ápice. Voltava ao armário e assim ia interrompendo e protelando o que tinha para fazer.
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Primeiro arrumava a secretária, encontrava coisas de que não me lembrava que tinha guardado, podia ficar perdida em papéis e recordações durante horas. Depois de tudo preparado para começar a estudar, a minha peregrinação começava. Levantava-me, ia até à cozinha, abria o armário das bolachas e dos cereais, escolhia o que queria e voltava para o quarto. Folheava um monte de fotocópias assinaladas com marcador fluorescente e post-it coloridos. Regressava à cozinha e decidia que o melhor era levar logo um prato para o quarto com cinco ou seis bolachas ou o pacote inteiro, que devorava num ápice. Voltava ao armário e assim ia interrompendo e protelando o que tinha para fazer.
Uma dúvida era sinónimo de uma tarde ao telefone com as amigas. A chamada começava pela matéria e terminava com uma dúvida existencial ou amorosa. Por vezes, combinávamos encontro no bar ou na biblioteca para estudar. Péssima decisão. Uma carga de nervos. Parecia que todos estavam mais adiantados no estudo do que eu ou parecia que todos estavam mais desesperados do que eu. O melhor é voltar para o meu quarto e iniciar a minha romagem até ao armário das bolachas, pensava.
Não havia barras com 70% de cacau, nem stevia ou tâmaras em vez de açúcar, eram Twix e Mars. Com a bolacha e o caramelo preso nos doentes, só pensava no poema de Álvaro de Campos. “Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.” E voltava a levantar-me, desta vez para ir à sala relê-lo ou ao Stendhal ou aos Max du Veuzit da minha avó — liam-se num ápice, logo, não perdia assim tanto tempo de estudo, enganava-me a mim mesma. Novo chocolate, um Kit Kat. Na hora seguinte, levantava-me para ir ao espelho confirmar que uma nova borbulha me tinha nascido na testa. “Os exames fazem-me tão mal”, suspirava.
A época dos exames, a mim, dava-me para engordar. Tenho o fígado feito num oito, sei-o hoje porquê. A M. bebia litros de café, a J. fumava cigarro atrás de cigarro, a C. não dormia de noite. “Não haverá outra maneira de os professores nos avaliarem?”, comentávamos à porta da sala onde faríamos a prova, de rostos fechados e cheias de folhas nas mãos, como se naqueles últimos segundos alguma matéria nos ficasse entranhada no cérebro ou saísse na ponta da caneta mal a pousássemos na folha do exame.
A pergunta surgiu há dias, à mesa. Agora são eles que se debatem com o drama dos exames. E começaram mais cedo do que nós. É certo que eu fiz exame no final da 4.ª classe, depois disso só a Prova Geral de Acesso (PGA), que me levou a manifestar-me pela primeira vez, da Cidade Universitária até à 5 de Outubro, em Lisboa. Já eles fizeram as provas de aferição e os exames nacionais no básico e no secundário. Não lhes serviu para se habituarem ou para normalizarem nas suas vidas estes momentos de avaliação — deveria ser uma das funções pedagógicas destas provas, presumo.
Hoje não há chocolates e bolachas hipercalóricas no armário, mas a granola e os frutos secos desaparecem num instante; as idas ao ginásio tornam-se mais espaçadas, assim como espectáculos ou saídas à noite, até o almoço em casa da avó pode ficar comprometido. Os exames estupidificam, limitam outras formas de aprender, condicionam as suas vidas. Sentados. Permanecem sentados à secretária, debruçados sobre calhamaços, o que os faz sentir tensão nas costas, ombros e pescoço, para não falar em noites mal dormidas. A cara de M. parece uma pizza, os lábios de S. estão gretados, os cabelos de L. caem, os ombros de E. estão ao nível das orelhas. A angústia da avaliação.
E recordo uma conversa com quase 20 anos com o então ministro da Educação, Marçal Grilo, sobre alguns dos benefícios do processo de Bolonha: mais trabalhos práticos, diferentes momentos de avaliação que promovam a autonomia do aluno. Aparentemente, pouco mudou. Os exames não só engordam como fazem os miúdos adoecer.