“Sempre a rock’n’rollar”, da nacional à auto-estrada
Em 1984, quando a banda Mão Morta se formou, Portugal tinha 196 quilómteros de auto-estrada. Actualmente, tem quase 3100 quilómetros. Há 35 anos na estrada, Adolfo Luxúria Canibal, recorda como era trilhar o país antes e pouco depois da entrada na Europa.
Uma hora e meia, foi o tempo que os Mão Morta demoraram a chegar ao Porto, depois de saírem de Braga para tocarem o primeiro concerto da banda no Orfeão da Foz, em Janeiro de 1985, um ano depois de se formarem. Percorreram o caminho de carro, pela Estrada Nacional, numa altura em que Portugal, a um ano de entrar na CEE, tinha apenas 196 quilómetros de auto-estrada. Esta foi a primeira de centenas de viagens que o grupo bracarense fez ao longo dos 35 anos de actividade por todo território nacional. Ao mesmo tempo que percorriam o país de lés-a-lés foram acompanhando a evolução das infra-estruturas rodoviárias.
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Uma hora e meia, foi o tempo que os Mão Morta demoraram a chegar ao Porto, depois de saírem de Braga para tocarem o primeiro concerto da banda no Orfeão da Foz, em Janeiro de 1985, um ano depois de se formarem. Percorreram o caminho de carro, pela Estrada Nacional, numa altura em que Portugal, a um ano de entrar na CEE, tinha apenas 196 quilómetros de auto-estrada. Esta foi a primeira de centenas de viagens que o grupo bracarense fez ao longo dos 35 anos de actividade por todo território nacional. Ao mesmo tempo que percorriam o país de lés-a-lés foram acompanhando a evolução das infra-estruturas rodoviárias.
O país, até à primeira metade da década de 1980, com cidades, vilas e aldeias mais distantes umas das outras, foi encurtando. Os Mão Morta, na estrada desde essa altura, também somam muitas horas de rock’n’roll fora do palco. Do paralelepípedo ao asfalto, “sempre a rock’n’rollar”, os bracarenses são testemunhas do salto quantitativo e qualitativo da rodovia desde que a Europa abriu as portas a Portugal. “No tempo do Cavaco, aquilo [a construção de estradas] era uma espécie de serventia para todos os pedidos”, lembra o vocalista, Adolfo Luxúria Canibal. Em quatro anos como primeiro-ministro, as estradas aumentaram 1133 quilómetros.
Hoje, para chegarem ao Porto, não precisam de mais de meia-hora, se seguirem pela A3, inaugurada em 1998, que liga a segunda maior cidade do país a Valença. Quando se formaram, faltavam vias de ligação de Braga ao resto do país. O mesmo acontecia com as outras cidades. Portugal estava quase como que retalhado em pequenas ilhas. As diferenças “eram mais vincadas de localidade para localidade”.
“Em 1984, Braga era muito mais pequena, tinha muito menos gente e ainda sofria muita influência da igreja”, recorda. Paralelamente, existia um “grupo juvenil muito radicalizado e politizado”, do qual fazia parte. Porém, à “excepção de um bar que abriu em 1983”, o Deslize, e de uma discoteca, o Clube 84, que abriu no ano seguinte, “não havia para onde ir”. Adolfo conta que o ponto de encontro deste “grupo marginal” eram os cafés ou então encontravam-se em casa uns dos outros.
Para programas que se prolongassem até altas horas existiam duas alternativas – Vigo ou Porto. “Em Braga não existia noite”, afirma. Se hoje ir ao Porto e regressar no mesmo dia “parece corriqueiro”, na altura não o era. “Tínhamos relações próximas com o Porto. Íamos lá muitas vezes. Tínhamos amigos a estudar lá e volta e meia passávamos temporadas de duas três noites no Porto”, conta.
Era lá que se encontravam com “uma tertúlia meia punk”, nomeadamente com membros da banda Cães a Morte e o Desejo, que mais tarde mudaram o nome para Cães Vadios. “Faziam parte daquela que ficou conhecida como a Tertúlia de Espinho, de onde vinha a publicação caseira Cadáver Esquisita”, recorda. É uma amiga de Braga, a morar no Porto na altura, que organiza o primeiro concerto da banda. “Na altura, foi um acontecimento para nós porque era o primeiro concerto”, diz. Fazem uma viagem de “hora e meia” para tocarem para uma sala com pouca gente. “Naquela época o público reduzia-se a um grupo marginal restrito. Em Lisboa era igual”, sublinha.
É no ano seguinte, em Fevereiro de 1986, que dão o primeiro concerto na capital, no Rock Rendez-Vous. “Demorámos quase seis horas a lá chegar”. Mais uma vez, “estariam umas vinte pessoas”. O caminho foi feito quase todo pela estrada nacional. “Durante muito tempo só existiam três pedaços de auto-estrada, uma à saída do Porto, outro em Coimbra e outro de Vila Franca de Xira a Lisboa”, diz, acrescentando que se lembra de uma fase anterior, em que o de Coimbra ainda não existia. “Lembro-me de não existir uma circular sequer e termos de atravessar cidades como Águeda e Coimbra”.
Piqueniques, boleias e acidentes
Pelo caminho era “normal” encontrar “piqueniques na berma da estrada”. “Hoje, perdeu-se esse hábito”, afirma. Outro hábito que caiu por terra foi o de “pedir boleia”. Muitas vezes o próprio usava esta modalidade para se deslocar para os concertos. “Quando estava a morar em Lisboa, enquanto o resto da banda saía de Braga, eu ia ter aos concertos à boleia”, recorda.
Os percursos mais penosos, sobretudo na década de 1980 e 1990, eram os das deslocações a Trás-os-Montes e para o Algarve. “Para chegar a Bragança demorávamos 4 horas”. Actualmente, é possível fazer estes pouco mais de 200 quilómetros em 2h15. “Para o Algarve ainda continua a ser penoso. Preferimos ir de avião”.
Na estrada, onde circulavam “muitos camiões TIR”, era frequente ver muitos automóveis acidentados. “Tive alguns amigos que perderam a vida na estrada. Felizmente nunca tivemos nenhum susto”, diz.
Todos os membros da banda, ainda nos anos 1980 e 1990, já conheciam outras cidades europeias. “Bastava sair para Espanha e mesmo nas estradas nacionais notava-se logo a diferença. Nessa altura em Portugal ninguém sabia o que era uma banda sonora e lá já tinham essas linhas marcadas na estrada”, conta. Na Alemanha, apesar de existir uma diferença entre o Leste e o Ocidente, “estavam muito mais avançados do que nós”. “As auto-estradas eram todas à borla. Na parte Ocidental não havia limites de velocidade, no entanto, logo depois da queda do muro de Berlim em 1989, nas do Leste não conseguíamos andar a 120 porque tinham tantas lombas que a determinada velocidade o carro ou levantava voo ou batia no chão”, recorda.
O salto qualitativo da rodovia
Em 2019, Adolfo considera que Portugal tem das melhores estradas da Europa. O início dessa transformação deu-se anos depois de Portugal ter entrado na União Europeia, na altura CEE, quando a A1, que liga Porto a Lisboa, ficou concluída em 1991. Depois, “foi melhorando” quando se fez a ligação Braga-Porto e depois com as que chegaram a Guarda, Covilhã, Castelo Branco, Évora. Se no ano da adesão Portugal, de acordo com dados da Pordata, tinha apenas 196 quilómetros de auto-estrada, actualmente tem 3.065 quilómetros.
Segundo informação disponível no site da Infra-estruturas de Portugal, a Rede Nacional Rodoviária em exploração, no seu conjunto, soma 17.874 quilómetros. Diz um estudo publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, da autoria de Alfredo Marvão Pereira e Rui Marvão Pereira, que entre 1980 e 2011, as infra-estruturas de transporte rodoviário representaram mais de um quarto (28,5%) do investimento total realizado em Portugal, ao longo das três décadas.
Só num dos mandatos de Cavaco Silva como primeiro-ministro, entre 1989 e 1993, construiram-se 1133 quilómetros de auto-estradas, de itinerários principais e complementares com financiamento comunitário
Auto-estradas a mais
Haverá actualmente auto-estradas a mais? “Claro que há. No tempo do Cavaco aquilo era uma espécie de serventia para todos os pedidos”, responde Adolfo. Se os primeiros troços vieram “aliviar” o tempo de deslocação de forma mais notória, mais tarde os ganhos passaram a ser menos expressivos: “Hoje estamos a falar de diferenças de 10 minutos”. Dá como exemplo o túnel do Marão: “Diminuiu o tempo para se chegar a Vila Real ou a Bragança. Mas quantos minutos se ganham? Não me parece ter sido bem planeado”.
Para o vocalista, o exemplo mais gritante acontece com as ligações entre Porto e Lisboa. “Temos duas auto-estradas em paralelo separadas por 3 quilómetros. Não podiam ter alargado o número de faixas? Quando não se pagava nas SCUTs ainda se usavam as paralelas, mas agora todos preferem ir pela principal e as outras estão vazias”.
Ainda assim, Adolfo considera que a entrada na Europa trouxe mais benefícios do que contrariedades. No que que diz respeito às vias de comunicação criadas pela rodovia entende-as como fulcrais para terem aproximado as cidades. No caso particular do Minho, afirma terem sido mais uma peça fundamental para a criação do “quadrilátero” Braga, Guimarães, Barcelos e Famalicão, mesmo a nível cultural. “Toda esta área já funciona quase como uma área metropolitana. Só é preciso é agora pensá-la como tal”.
Para as diferenças se tornarem menos acentuadas considera faltarem ser necessário serem estreitadas outras vias de comunicação: “Portugal continua a ser um país centralista e continua-se a dar atenção ainda apenas ao que se passa só dentro de Lisboa”.