Jogos com fronteiras: como o sector cultural se está a preparar para o “Brexit”
A esmagadora maioria dos agentes culturais britânicos votou contra a saída da União Europeia. Agora, os festivais desenham cenários, os arquitectos pedem novos vistos e os músicos sugerem “passaportes de digressão”. Temendo que as barreiras burocráticas se tornem muros e que a arte britânica se torne ainda mais insular.
Quase três anos depois do referendo que deu a vitória ao “leave”, o “Brexit” permanece uma incógnita mas é já declaradamente um factor de instabilidade no sector cultural. Num país dividido entre a vontade de sair e a vontade de ficar na União Europeia (UE), grande parte do tecido das indústrias criativas já se manifestou contra o “Brexit”: os músicos temem problemas nas digressões, o teatro e a dança preparam-se para ver o seu mundo encolher, o cinema e a TV receiam perder técnicos ou filmagens. O Reino Unido, descreve o dramaturgo e encenador Tim Etchells, tornou-se uma “ilha-prisão” – uma “atmosfera muito difícil para o internacionalismo”, resume ao PÚBLICO o director artístico Kris Nelson. “Que direitos terei eu?”, questiona-se o artista português Xavier de Sousa, há 14 anos a viver em Inglaterra.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Quase três anos depois do referendo que deu a vitória ao “leave”, o “Brexit” permanece uma incógnita mas é já declaradamente um factor de instabilidade no sector cultural. Num país dividido entre a vontade de sair e a vontade de ficar na União Europeia (UE), grande parte do tecido das indústrias criativas já se manifestou contra o “Brexit”: os músicos temem problemas nas digressões, o teatro e a dança preparam-se para ver o seu mundo encolher, o cinema e a TV receiam perder técnicos ou filmagens. O Reino Unido, descreve o dramaturgo e encenador Tim Etchells, tornou-se uma “ilha-prisão” – uma “atmosfera muito difícil para o internacionalismo”, resume ao PÚBLICO o director artístico Kris Nelson. “Que direitos terei eu?”, questiona-se o artista português Xavier de Sousa, há 14 anos a viver em Inglaterra.
Tentar avaliar o impacto do “Brexit” na cultura é encontrar um sector a navegar à vista. Uma sondagem da organização britânica Creative Industries Federation (CIF) mostrou que 96% dos agentes culturais votaram “remain” no referendo de 2016; consumada a vitória do “leave”, há agora uma espécie de unanimidade sobre quais poderão ser as áreas mais vulneráveis aos efeitos da saída do Reino Unido da UE, sobretudo num cenário “no-deal” – um corte mais abrupto que terá efeitos inevitáveis na livre circulação de pessoas e bens. Corroborando relatórios da Câmara dos Lordes, do Arts Council England (ACE) ou da CIF, os entrevistados do PÚBLICO acreditam que os artistas independentes ou emergentes serão os mais afectados e confirmam que as principais preocupações do sector são os limites à circulação, o aumento das taxas e dos custos burocráticos, os entraves às contratações de estrangeiros, a perda de acesso a financiamento da UE e o impacto da saída nas redes previamente estabelecidas com parceiros da Europa continental.
Mas, pairando sobre tudo isso, é a perda de mundo, o empobrecimento das trocas culturais, que preocupa também a comunidade artística. “O meu medo é que, à medida que o ‘Brexit’ siga o seu trajecto caótico, como um tanque que rola sobre a psique britânica, viremos as costas às ideias internacionais e queiramos focar-nos no que é britânico, no que é cá de casa”, confessa ao PÚBLICO Kris Nelson, director artístico do London International Festival of Theatre (LIFT). O canadiano assumiu o comando deste importante evento bienal londrino depois de quatro anos como responsável do Fringe Festival de Dublin. “Candidatei-me a este trabalho depois do ‘Brexit’. Sabia que vinha em tempos tempestuosos.”
Entretanto, e mesmo que a saída permaneça ainda uma miragem, o “Brexit” já produziu efeitos práticos. Em 2017, o Reino Unido retirou as suas cinco candidaturas (Dundee, Nottingham, Leeds, Milton Keynes e Belfast/Derry) a Capital Europeia da Cultura de 2023. A cidade britânica mais recentemente contemplada pelo programa da UE foi Liverpool, que em 2008 recebeu mais de 9,7 milhões de visitantes e encaixou receitas de 872 milhões de euros. Na música, e ainda que as actuais regras fronteiriças se mantenham em vigor até 2020, festivais como o Womad, um dos maiores no segmento das músicas do mundo, já vêem bandas a temer entraves à sua entrada no país.
Se o Manchester International Festival decorrerá este ano sem problemas de maior, a próxima edição do LIFT só acontece daqui a um ano – pelo que Kris Nelson está agora a trabalhar simultaneamente em quatro cenários. “Há quatro festivais diferentes que poderemos estar a fazer em 2020, dependendo de onde estivermos e do financiamento”, explica ao PÚBLICO. “Como programador e produtor, estou a pensar em todas as questões e dúvidas logísticas – o ‘Brexit’ causou uma enorme incerteza no mundo cultural britânico. No que diz respeito às formalidades de contratatação, à liberdade de circulação. Tudo se tornará muito mais difícil.”
A importância de um visto
A cultura britânica é uma forma de soft power que, constata o relatório Brexit: Movement of People in the Cultural Sector (2018), emitido pela Câmara dos Lordes, pode de facto sofrer com o “Brexit”. O seu peso financeiro não é de somenos – em 2016 representou 12,5 mil milhões de euros para o PIB do país, mais do que vale a agricultura, aponta o Arts Council England. O organismo público ouviu em 2017 quase mil agentes, da dança à literatura passando pelos museus, pelas bibliotecas e pelas artes visuais, e concluiu que nem a descida da libra, que pode tornar o mercado, a mão-de-obra e o turismo britânicos mais atraentes, convence o sector. Os agentes temem não poder trazer artistas estrangeiros ao Reino Unido, ver diminuir os projectos transfronteiriços (caso de filmes com financiamento comunitário como a oscarizada A Favorita) ou deixar de andar em digressão pela UE.
Noutra frente, há os trabalhadores europeus que alimentam o sector cultural britânico. Das cerca de 654 mil pessoas que o sector emprega no Reino Unido, a proporção de não-britânicos e de cidadãos de países da UE atinge os 20% na dança, segundo o ACE, e os 33% nos efeitos visuais do cinema e da TV, diz a CIF; dos 38 mil arquitectos a trabalhar no Reino Unido, 6000 são europeus não-britânicos. “Uma fatia de 20 a 25% dos trabalhadores em sectores especializados do cinema, da televisão e dos videojogos é composta por cidadãos da UE cujos talentos específicos não são replicáveis pela mão-de-obra britânica nos próximos dez anos”, alerta o compositor Howard Goodall.
Em causa ficarão sobretudo os trabalhadores por conta própria, com vínculo fixo ou temporário. Como o actor que é contratado em cima da hora para uns dias de rodagem. Sem as facilidades actuais na obtenção de visto, esse tipo de contratação, “que também se aplica a bailarinos, cantores de ópera ou técnicos que trabalhem em espectáculos em digressão pela Europa, torna-se instantaneamente impossível”, nota Goodall. E essa flexibilidade que até aqui existia “é essencial para um hub cultural como Londres, especialmente em áreas como os efeitos visuais ou os videojogos”, acrescentava Samuel West, presidente da associação National Campaign for the Arts, no semanário The Stage.
À escala das empresas, o Reino Unido é sede de cerca de 60% dos canais europeus que transmitem para outros países, segundo o Observatório Europeu para o Audiovisual. Mas perante as dificuldades previstas, os americanos dos canais Discovery, por exemplo, decidiram deixar de ter Londres como base de operações europeia e pediram já licenças na Europa continental. Sendo o Reino Unido o segundo maior produtor e exportador cinematográfico da UE, logo a seguir à França, o cinema independente enfrenta a ameaça do aumento de custos, alerta o British Film Institute, com os exibidores da Motion Picture Association a preverem por seu turno “um impacto sério” na “capacidade do país para atrair produções dos estúdios norte-americanos” que tantas receitas lhe têm dado – 1,9 mil milhões de euros só em 2017 com filmes como Han Solo: Uma História Star Wars ou Missão: Impossível – Fallout.
Para fazer face às dificuldades que se avizinham, a CIF apela a uma revisão “significativa” das leis da imigração, para que as indústrias criativas “tenham acesso ao pessoal permanente e temporário e aos freelancers de que precisam”. E a Câmara dos Lordes defende mesmo a criação de um “visto de digressão” de curto-prazo — nos dois sentidos, frisando a importância de “acordos recíprocos” com a UE, sob pena de “uma perda significativa para os públicos que apreciam ver talentos da Europa continental a actuar no Reino Unido”.
Uma arte ainda mais insular
Enquanto programador na Culturgest, Francisco Frazão trouxe muitas novas linguagens do teatro britânico a Lisboa. E se o agora director artístico do Teatro do Bairro Alto não sentiu ainda na pele os efeitos práticos do “Brexit”, já o tem na agenda. “Agora, com qualquer espectáculo que venha do Reino Unido há sempre esta nuvem a pairar. Faz parte do próprio gesto de programação ter isso em conta”, explica ao PÚBLICO. Não revela muito, mas indica que na sua programação de 2019 haverá uma ligação, nem que seja “subliminar”, ao tema. Para já teme um aumento da insularidade artística britânica, e entraves burocráticos e de custos. “Dependendo da dimensão dos projectos, pode vir a ser significativo.”
A partir de Brighton, Xavier de Sousa corrobora: “Para os teatros regionais ou para os artistas individuais, vai ser muito difícil a movimentação de espectáculos para fora e para dentro de Inglaterra. As grandes instituições vão ter poucos problemas, têm arcaboiço para lidar com vistos e afins.” É o caso do Barbican Centre, que não abdicará do “compromisso de manter ligações culturais com os seus parceiros internacionais e de continuar a trazer obras internacionais até Londres”, diz ao PÚBLICO, por email, o seu porta-voz. A instituição estará atenta a possíveis questões práticas “como problemas nas viagens, alfândegas ou cargas” e planeia “mitigá-los tanto quanto possível”.
Francisco Frazão recorda a importância de redes colaborativas comunitárias como a Europa Criativa (1,46 mil milhões de euros de apoios entre 2014-2020; até 2016, 1385 projectos com base no Reino Unido receberam dele 400 milhões de euros), de que beneficiam, entre outros sectores, o teatro, a dança e o cinema, e a incerteza que as rodeia. Até 2020 tudo parece estar garantido. Kris Nelson, por exemplo, aguarda os resultados de duas candidaturas a esse programa que lhe permite colaborar com Portugal e obter financiamento de outra forma raro — uma envolvendo a Culturgest, outra o Alkantara Festival. Pelos prazos, não devem ser afectadas pelo Brexit — “mas as regras estão sempre a mudar, por isso não temos a certeza”, ressalva. O director artístico teme que o “Brexit” acabe por vitimar “uma estética ou um trabalho baseado na beleza — a arte em prol da arte será mais difícil de racionalizar” — e que o mais comercial sobrevenha.
“Mas mais profundo do que tudo isto”, suspira, lembrando o “ordálio do Brexit”, a violência física e oratória da campanha, “o vitríolo no Parlamento”, é o que veio ao de cima — “uma cisão no público britânico alimentada por um ambiente político muito difícil, carregado e muitas vezes xenófobo”. “O tom da discussão no Twitter ou na imprensa”, lamenta, “é chocante”. Daí que Xavier de Sousa pondere o seu lugar num país que considerava ser a sua casa e onde há dois anos monta o seu espectáculo Post, sobre migrantes — “Houve programadores que me disseram que já tinham temas semelhantes, mas feito por ingleses”; “somos vaiados na rua por falarmos de maneira diferente ou por não parecermos ingleses”. É o outro impacto cultural do “Brexit”: pôr sal em feridas sociais que na verdade nunca tinham sarado.
O futuro, dizem os agentes ouvidos pelo PÚBLICO, é lutar por novos modelos e pela continuação de um mundo de trocas. “Eu e o LIFT temos um compromisso com o internacionalismo de dar uma plataforma a artistas que de outra maneira não seriam vistos em Londres — tem tudo a ver com democracia cultural”, diz Kris Nelson. Como programador, tenta prever de que precisará o público em 2020. “Acho que o público vai querer elevar-se. Escapar. [Haverá] uma urgência de confrontar. Mas também uma necessidade de solidariedade. É um enigma.” Xavier de Sousa lança este mês “o grupo Migrants in Culture, composto por artistas, produtores, programadores que se identificam como imigrantes, para dar resposta a questões de pessoas que trabalham no contexto cultural”.
Tim Etchells, o fundador dos Forced Entertainment, uma das mais internacionais companhias de teatro experimental britânico, e Artista na Cidade de Lisboa em 2014, assinava há um mês um texto inflamado sobre o “Brexit”, esse “acidente de viação em câmara lenta” que transforma o país numa “ilha-prisão”. Nele, lamentava a decisão de sair da UE “motivada em grande parte pela nostalgia” de um “Reino Unido que só existiu na fantasia histórica”. Mas por mais obstáculos que venham a colocar as fronteiras, por mais incontornáveis que venham a revelar-se os entraves às escolhas dos programadores e à diversidade da oferta, não está em causa, antecipa, um regresso ao século XX pré-espaço comunitário.
“Apesar de tudo, estamos na era digital. As dores de crescimento e as partes mais difíceis serão talvez os próximos cinco-sete anos, e nesse processo evoluirá um novo modelo de trabalho, muito ligado com o público”, acredita Kris Nelson. “Não vai ser mais fácil, e seguramente não vai ser mais fácil para os artistas independentes e trabalhadores freelance da cultura. [No Reino Unido] as oportunidades de ver trabalho internacional vão ser mais espaçadas.” Mas no caso de um revés da fortuna impor nova votação e com ela a permanência do país na UE, “ainda haverá muita coesão social para criar”. E também para esse trabalho, confia, “as artes serão fundamentais”.