Igreja condena corrupção e cultura “da cunha” para obtenção de emprego

Carta pastoral dos bispos não contém qualquer referência explícita ao escândalo em torno da nomeação de familiares de membros do Governo. Mas documento deixa clara a condenação do recurso “à cunha” e, numa sociedade que descreve como “minada pela corrupção”, apela a cultura de “honestidade”.

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Sérgio Azenha

Da banalização do aborto à exploração laboral, passando pela degradação dos serviços públicos e pela condescendência face à “cunha”: é um olhar simultaneamente crítico e preocupado aquele que transparece na carta pastoral que a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) aprovou na sua 196.ª assembleia plenária, que terminou esta quinta-feira, em Fátima. No documento não faltam sequer alertas para o “crescente nacionalismo autoritário ou populista” e para a “generalização do discurso xenófobo” que ameaçam a coesão dentro da União Europeia.

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Da banalização do aborto à exploração laboral, passando pela degradação dos serviços públicos e pela condescendência face à “cunha”: é um olhar simultaneamente crítico e preocupado aquele que transparece na carta pastoral que a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) aprovou na sua 196.ª assembleia plenária, que terminou esta quinta-feira, em Fátima. No documento não faltam sequer alertas para o “crescente nacionalismo autoritário ou populista” e para a “generalização do discurso xenófobo” que ameaçam a coesão dentro da União Europeia.

“O facto de Portugal ter agora as contas públicas aparentemente saneadas e uma dívida que, embora ainda muito elevada, goza da confiança dos mercados, não pode fazer esquecer a sua fraca resiliência a choques externos e a degradação dos serviços públicos, na sequência da quebra de investimento”, alertam os bispos portugueses, apontando a Saúde e a Educação como os sectores que sofrem da consequente “degradação dos serviços prestados”, como se lê na carta pastoral denominada “Um olhar sobre Portugal e a Europa à luz da doutrina social da Igreja”.

Sobre a persistência da pobreza, “mesmo entre os trabalhadores empregados”, o documento recorda que, em Portugal, cerca de 10% dos trabalhadores com emprego não conseguem “o salário justo que permita ao seu agregado familiar viver dignamente, assegurando a educação dos filhos, o acesso à cultura e à formação, a alimentação, a habitação e o lazer”. “A busca do lucro é, em si mesma, legítima. Mas já não o será, se conduzir ao sacrifício de direitos fundamentais da pessoa do trabalhador”, lembram, para declararem a ilicitude dos despedimentos colectivos em empresas lucrativas.

Mas algumas das críticas mais contundentes relacionam-se com o problema da corrupção. “Uma gratificação a troco de um pequeno favor pode ser o primeiro passo para uma cultura que desculpa o suborno, o tráfico de influências e a aquisição indevida de vantagens, até à corrupção que tanto está a minar a sociedade em que vivemos”, apontam os bispos. Considerando que “a erradicação da corrupção é possível”, o documento apela para a necessidade de a sociedade deixar de “desvalorizar” as consequências do recurso à “cunha”. “Temos, cada um, de proceder com a mesma transparência que exigimos a todos na obtenção de um emprego ou na luta por uma promoção, um salário justo e um prémio laboral”, exortaram os bispos.

Sem qualquer referência explícita ao escândalo em torno da nomeação de familiares de membros do Governo, o documento apela a um esforço de todos na “promoção de uma cultura de honestidade e da legalidade”.

Protestos “inorgânicos” devem ser apoiados

Alargando o olhar para a União Europeia, e a poucos dias das eleições, os 21 bispos portugueses dizem olhar com preocupação para os “movimentos de desagregação da União Europeia, como o Brexit e o crescente nacionalismo autoritário ou populista, acompanhados da generalização do discurso xenófobo”. “Assistimos mesmo ao regresso de ideologias neonazis e anti-semitas”, sublinharam, para considerar que, também aqui, a luta pelo bem comum pode ser a chave para superar a crise. Neste contexto, acrescenta o documento, a participação cidadã deve ser “vista como positiva, mesmo quando é protagonizada por jovens e assume cariz inorgânico”.

Depois de passar em revista valores fundamentais da Igreja – nomeadamente a oposição à eutanásia e ao aborto, e neste caso a Igreja lembra que legalização não deve ser tida como “inevitável” ou “irreversível” - a carta pastoral lamenta o facto de “uma em cada dez crianças em Portugal” continuarem “sujeitas a castigos de extrema violência física e psíquica aplicados por pais e educadores”. Os bispos dizem-se ainda interpelados “pelo número crescente de mulheres mortas e de queixas registadas por mulheres vítimas de violência psíquica e física”.

Numa sociedade cada vez mais envelhecida, a Igreja apelou a “urgentes medidas económicas e sociais” de promoção da natalidade”, atendendo a que, muito para lá da mudança de mentalidades, o nascimento de bebés está ameaçado por problemas como a precariedade laboral e as dificuldades de conciliação entre o trabalho e a vida familiar, agudizadas pelas políticas laborais. “Tenha-se em conta que a empresa só deveria, justificadamente e em situações graves, recorrer à laboração contínua, que implica trabalhar por turnos, trabalho nocturno e extraordinário ou horários imprevisíveis e repetidamente alterados”, exortaram os bispos, para quem “o simples aumento dos lucros não pode ser visto como razão suficiente para o uso deste tipo de políticas laborais”.

A dificuldade de os casais mais jovens acederem a casa, por causa do preço cobrado, também não passou despercebida dos bispos. “Há por isso que encontrar alternativas, nomeadamente no âmbito da habitação social”, apelaram, lembrando que, à crise demográfica, subjaz “a mais grave crise social das sociedades europeias, cujos efeitos se hão-de sentir no futuro, talvez quando já pouco haja a fazer para os remediar”.