Duplo Espaço: o atelier de Sónia Baptista
Laura Sequeira Falé gosta de ateliers e mostra-os no blogue Duplo Espaço. Desta vez, visitou o atelier de Sónia Baptista.
Queria entrevistar a Sónia Baptista (Lisboa, 1976) há alguns meses, mas tive dificuldade em perceber a que espaço poderia ir se a Sónia se apresenta como performer, escritora, actriz, coreógrafa e bailarina. Não é artista plástica mas é artista e eu perguntei-me em que espaço trabalharia.
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Queria entrevistar a Sónia Baptista (Lisboa, 1976) há alguns meses, mas tive dificuldade em perceber a que espaço poderia ir se a Sónia se apresenta como performer, escritora, actriz, coreógrafa e bailarina. Não é artista plástica mas é artista e eu perguntei-me em que espaço trabalharia.
Combinámos encontro na Bah, Oui!, a loja da Rita Dourado perto do Largo Camões, em Lisboa, que está na fronteira entre a casa da nossa avó com bom gosto e um espaço comercial. Cheguei e vi a Sónia ao fundo, junto à máquina registadora, desembrulhando lenços coloridos e dizendo uma frase que viria a repetir durante a nossa conversa: “Não posso, desta vez não posso levar, ai... mas quero tanto!”
A ideia para este encontro foi a de irmos conversando ao mesmo tempo que a Sónia ia escolhendo objectos daquele espaço que poderiam ser seus. A Rita serviu-nos chá com bolos e ficámos juntas até anoitecer à volta de um balcão com o tampo em vidro. A Sónia fala muito e elabora sempre as suas respostas. Não perde a linha de pensamento mesmo quando é interrompida, como se estivesse simultaneamente a passar dois filmes na sua mente, o da conversa connosco e o da conversa consigo própria.
Não havia espaço melhor para conversar com a Sónia do que a Bah, Oui!. A loja está repleta de pequenos objectos para os quais a Sónia ia olhando e, através deles, contando a sua história de vida que é a base das suas danças e performances. Nesse balcão onde nos encostámos podíamos ver um conjunto de caixinhas com pregadores de lapela bordados. Entre cerejas, caveiras, guarda-chuvas ou palavras sugestivas, a Sónia ia estabelecendo uma ligação entre aqueles pregadores. A determinado ponto tornou-se num jogo. Perguntei: “Se agora eu escolher três pregadores aleatórios, tu consegues contar-me parte da tua vida a partir deles, relacionando-os?”. E assim se passou mais de meia hora. “Este lembra-me aquela vez em que eu fiz uma viagem não-sei-onde, onde (e agora vou usar o pregador da peúga) usei umas meias tal-e-tal que comprei de urgência.” Essa capacidade de ver ligações em tudo o que está à sua volta, ligações inesperadas que têm origem nas suas próprias histórias, é o seu ponto forte e a ignição do seu trabalho.
É porque a Sónia intui que tudo se relaciona com tudo que o seu atelier pode estar em potência em qualquer sítio. Não há grandes limites de espaço, só interessa que a própria esteja presente e pronta a escrever. A maior parte das vezes é em casa que escreve e frequentemente está sozinha. É dessa solidão que bebe, percebe-se logo, mesmo que ainda não se tenha lido o seu livro E na queda raposar (não (edições), 2014) ou visto um dos seus últimos espectáculos, Sozinhar, que começava com “Só” de sozinha, mas também de Sónia, como se esse fosse o seu destino já traçado no nome. Não há outra forma de explicar melhor a sensação de estar com ela: fala em fio, nem muito depressa nem muito devagar, faz as pausas nos sítios certos e é magnética porque não desvia o olhar do interlocutor. É como se dançasse à medida que fala, mas sem se mexer.
Na Bah, Oui!, a Sónia escolheu bibelôs em forma de pequenas raposas, daqueles que poderíamos encontrar por cima do napperon na casa da nossa avó. Essa raposa, que faz lembrar a expressão da Sónia, com os olhos muito abertos e muito atenta, é como se fosse o seu animal espiritual. Quando a Sónia agarra a porcelana, faz-lhe uma casinha com as mãos e deixa-me fotografá-la. Todos os seus gestos têm que ver com o seu trabalho, como se o habitasse a toda a hora e ele a habitasse em simultâneo.
Muito do que a Sónia escreve, repesca às suas memórias de infância que são escassas. Mas há uma memória que se conserva com intensidade: a Ana. Disse-me que o seu trabalho tem sempre uma referência à Ana, seja uma menção ao seu nome ou a uma brincadeira entre as duas. A Ana é a personificação desse amor que temos pela nossa melhor amiga de sempre e uma conexão que Sónia descreve como inexplicável, apesar de a explicar bastante bem no vídeo abaixo.
A sua condição é de bicho, bicho humano e em simultâneo não humano, com capacidade de ser sozinho. Trabalha em grupo quando a sua individualidade beneficia do grupo, trabalha sozinha nas outras vezes. Fala bastante sobre feminismo e da condição das mulheres que muitas vezes educam os homens num sentido capitalista, como se elas próprias também propagassem na educação os seus preconceitos em relação àquilo que uma mulher deve ou não de ser. “As mulheres [heterossexuais] não gostam de mulheres”, diz. “E é uma pena. Podíamos fazer muito mais, podíamos ter feito muito mais.”
A sua queerness veio tarde e faz-lhe sentido assim. Não é que tenha estado presa dentro de um armário, mas foi acontecendo, foi-se metamorfoseando. Considera que este mundo e a vida são tristes, muito tristes, mas temos que ser capazes de encontrar alguma alegria no meio dessa tristeza toda. Não querendo morrer, disse a Sónia num tom grave, parece que vivemos em aspic, numa daquelas massas gelatinosas com carne e vegetais que eram típicas dos pratos dos anos 1980. E viver em suspenso é sempre desagradável.