A epopeia minhota que teve início com um murro em Telavive
Há 25 anos, o ABC conseguia algo que continua a ser um feito único no andebol português: marcar presença na final da Liga dos Campeões. O PÚBLICO recupera uma trajectória que foi tão brilhante quanto improvável.
“No segundo jogo da fase de qualificação, em Israel, tínhamos a eliminatória perdida no final da primeira parte. A dupla de árbitros era russa e, ao intervalo, tive que dar um murro na mesa do balneário deles a dizer que, se as coisas continuassem assim, abandonaríamos o encontro na segunda parte”. Artur Monteiro era director desportivo do ABC na época 1993-94 e recorda, com estas palavras, um dos momentos-chave da “epopeia” da formação de Braga na Liga dos Campeões de andebol. Uma caminhada histórica que, naquele ano, apenas terminou na final.
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“No segundo jogo da fase de qualificação, em Israel, tínhamos a eliminatória perdida no final da primeira parte. A dupla de árbitros era russa e, ao intervalo, tive que dar um murro na mesa do balneário deles a dizer que, se as coisas continuassem assim, abandonaríamos o encontro na segunda parte”. Artur Monteiro era director desportivo do ABC na época 1993-94 e recorda, com estas palavras, um dos momentos-chave da “epopeia” da formação de Braga na Liga dos Campeões de andebol. Uma caminhada histórica que, naquele ano, apenas terminou na final.
Neste domingo, dia 28 de Abril, cumprem-se exactamente 25 anos desde que o ABC chegou à derradeira partida da Liga dos Campeões de andebol. Um quarto de século depois, continua a ser a melhor prestação de sempre de qualquer equipa portuguesa na principal competição da modalidade e a derrota tangencial frente ao TEKA de Santander ainda orgulha os que tiveram a oportunidade de viver a ocasião na primeira pessoa.
Aleksander Donner, falecido em 2013, foi treinador do ABC durante 13 épocas e deixa saudades pelo rigor e competência que imprimia no trabalho diário. Jorge Rito, técnico do clube e adjunto do ucraniano durante 11 anos, explica ao PÚBLICO os traços que marcavam a singularidade de Donner. “A sua imagem de marca era o rigor táctico, do ponto de vista ofensivo e defensivo. Era completamente obcecado pelo trabalho”, assinala.
“Tubarões” não impediram passagem
Os bracarenses conseguiram ultrapassar a fase de qualificação para a Liga dos Campeões, mas a montanha a escalar apenas se tornaria maior na fase de grupos. No sorteio, os croatas do Badel 1862 Zagreb e os noruegueses do Sandefjord HK calharam na rifa aos minhotos. Mesmo junto destes “tubarões”, o treinador ucraniano acreditava que seria possível chegar à final, reservada aos primeiros classificados dos Grupos A e B.
“Quando ele dizia que íamos à final da Liga dos Campeões, não vou dizer que os atletas se riam, mas tinham muitas dúvidas que tal pudesse acontecer. Se não houvesse este posicionamento tão ambicioso de quem dirige a equipa, provavelmente não teríamos conseguido chegar a uma final europeia”, relembra Jorge Rito.
Apesar de uma derrota pesada no primeiro encontro frente ao Sandefjord, os pupilos de Donner recuperaram a concentração e, no final das seis partidas, foram primeiros classificados do Grupo A com oito pontos somados. Com os mesmos oito pontos, o TEKA Santander, de Espanha, venceu o Grupo B, garantindo a presença na final ao lado dos minhotos.
“A cidade e o país uniram-se”
Os finalistas estavam encontrados. Os espanhóis do TEKA Santander seriam o adversário que os comandados por Donner teriam de ultrapassar para inscrever o nome na história do andebol. A imprensa dava todo o favoritismo ao Santander, relembra Jorge Rito: “A equipa do ABC surge de forma surpreendente nesta final. É evidente que os orçamentos não eram nada parecidos. Surgimos como os outsiders e o TEKA era apontado como quase vencedor antecipado desta final.”
Surpreendentemente, os bracarenses bateram o pé aos espanhóis e arrancaram um empate (22-22) no Pavilhão Flávio Sá Leite. Um resultado que, à primeira vista, parecia muito positivo, mas que, na opinião do treinador adjunto, traduziu um desperdício que, na segunda partida, custaria o troféu aos minhotos.
“Quem vê o primeiro encontro percebe que nos primeiros 20 minutos vulgarizámos a equipa do Santander. Chegámos a fazer o 9-2 e ter sete golos de vantagem. Depois, fruto de alguma inexperiência, sofremos seis golos sem resposta e fomos empatados para o intervalo. Creio que se tivéssemos levado uma vantagem de três ou quatro golos para Espanha, teríamos sido campeões da Europa”.
Por sua vez, Artur Monteiro sublinha o apoio que o ABC teve em Espanha, afirmando que todo o país se uniu em torno da equipa bracarense. “Tinha pedidos de bilhetes de Lisboa, do Algarve, todo o país para ver a final”, recorda.
Esta união nacional manifestou-se também a nível federativo. Com ordenados em atraso, as despesas das viagens eram incomportáveis para o clube minhoto. Luís Santos, então presidente da Federação de Andebol de Portugal, evitou que a aventura europeia do ABC terminasse abruptamente por motivos financeiros. “O senhor Luís Santos chamou-me a Lisboa e disse, em frente da funcionária da agência: ‘Agende todas as viagens e marque também o bilhete para a final’. Financiou as viagens do ABC. Foi um grande senhor”.
Tal como na primeira mão, as equipas evidenciaram um grande equilíbrio ma segunda partida. O pavilhão do Santander estava lotado e os minhotos bateram-se de igual para igual com os espanhóis, mas foram os detalhes a impedir que o ABC conseguisse levar a melhor. A formação de Aleksander Donner seria derrotada por 23-21.
Andebol tornou-se mais rápido
Um quarto de século depois, e num ano em que o Sporting também brilhou a grande altura no novo formato da Liga dos Campeões, o que mudou na modalidade? Para Jorge Rito, o momento de viragem surgiu com o fim da obrigação de, após cada golo, a bola ser levada ao centro. “Nos últimos anos, tem havido tentativas para que o andebol se torne cada vez mais rápido. Conseguiram. A partir do momento em que se acabou com a regra de levar a bola ao centro, o jogo ficou com uma velocidade estonteante. Acho que se perdeu um bocado da beleza do jogo”.
O “xadrez táctico” que o antigo adjunto tanto elogiava em Donner deixou de ter uma importância basilar numa modalidade que, garante Jorge Rito, viu perder muitos dos grandes nomes que faziam tudo dentro das quatro linhas: “A táctica colectiva perdeu bastante com a introdução da regra. Tenho pena de dizer isto, mas há 15, 20 anos não era difícil encontrar jogadores e chamar-lhes grandes talentos. Agora é complicado dizer que um jogador é completo”.
Na opinião de Artur Monteiro, “o dinheiro do futebol desvirtuou o andebol”, com destaque para a vertiginosa diferença de orçamentos entre os três “grandes” e os restantes emblemas do campeonato português. Para a memória fica a prestação do ABC e uma promessa do antigo director desportivo: a de que tudo fará para voltar a levar o emblema minhoto a outra final europeia.