José Díaz viveu 100 dias sozinho na montanha para mostrar que se pode ser feliz com pouco
A experiência vivida no Parque de Redes, em Espanha, deu origem ao documentário Cem dias de solidão.
É noite cerrada. José está de pé, frente a vales de breu. Vê-se apenas uma parte do rosto tenuemente iluminada, uma mão que se aproxima da boca para fazer ressonância. Abre os pulmões num uivo longo. Nada. De repente, ouve-se um lobo responder, depois outro, outro e outro. “Na primeira vez que fiz isto e responderam-me, caíram-me lágrimas de emoção. É uma sensação impressionante.” A tela fica completamente negra. Ouve-se apenas o coro das montanhas. Por momentos, também estamos ali, na pele de José, completamente sozinhos com os lobos e as serranias do Parque Natural de Redes, nas Astúrias, classificado como Reserva da Biosfera pela UNESCO. “O técnico de som depois decompôs aquela gravação e mostrou-me. Eram 13 ou 15 lobos.”
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É noite cerrada. José está de pé, frente a vales de breu. Vê-se apenas uma parte do rosto tenuemente iluminada, uma mão que se aproxima da boca para fazer ressonância. Abre os pulmões num uivo longo. Nada. De repente, ouve-se um lobo responder, depois outro, outro e outro. “Na primeira vez que fiz isto e responderam-me, caíram-me lágrimas de emoção. É uma sensação impressionante.” A tela fica completamente negra. Ouve-se apenas o coro das montanhas. Por momentos, também estamos ali, na pele de José, completamente sozinhos com os lobos e as serranias do Parque Natural de Redes, nas Astúrias, classificado como Reserva da Biosfera pela UNESCO. “O técnico de som depois decompôs aquela gravação e mostrou-me. Eram 13 ou 15 lobos.”
A cena surge quase no final do documentário Cem dias de solidão, “o primeiro filme e, quase seguramente, o último” feito por José Díaz. Um retrato contemplativo, existencial e experimental, repleto de belezas naturais, de momentos National Geographic com os animais do parque em trote pelas colinas, de episódios cândidos e bem-humorados com o cavalo Átila ou com a marta escondida no galinheiro, de emoções fortes, de muito silêncio, de solidão, de reflexão. Do que é que precisamos para vivermos bem? Para sermos felizes?
“Queria mostrar ao mundo que é possível fazer uma pausa no caminho, que a vida é muito mais simples do que parece, que se pode viver com menos do que temos, que a conexão com a natureza é inspiradora, que se pode ser muito feliz sozinho.” Estamos cá fora, sentados num alpendre frente ao palco principal do festival ObservaRia, em Estarreja, onde José Díaz veio apresentar o documentário, lançado em Espanha há cerca de um ano. A chuva miudinha, persistente, aproxima-nos daquele Outono, três meses e meio, 100 dias completos, que José viveu completamente isolado da civilização no topo das montanhas. “O silêncio é uma boa companhia, ainda que pareça mentira”, diz-nos. As gotas ensopam lentamente a grama, os quispos.
A 12 de Setembro de 2015, José despediu-se da família e partiu sozinho para as montanhas, sem telemóvel, sem computador, sem Internet. “Tive a desgraça de viver cinco ou seis anos fora das Astúrias, em Múrcia, no Sul de Espanha, e prometi a mim mesmo que, quando voltasse, compraria uma cabana.”
Da aldeia mais próxima, Caleao, são duas horas a pé, subindo por trilhos de terra. As estradas alcatroadas não chegam ali. Não se vêem cabos de electricidade, ferro, cimento. “Salvo a própria cabana, não existe nenhum elemento humano em redor.” É isso que aquele refúgio de pedra, comprado há cerca de 15 anos, tem de mais especial. Ali não afloram os ares da civilização. Apenas mantos de faias, carvalhos, castanheiros. E os ruídos dos veados na brama, o latido das camurças, “muito parecido” ao dos cães, os uivos dos lobos, o chilrear dos pássaros. “Gosto muito de me sentar no bosque durante a noite e ouvir os movimentos, os animais a perseguirem-se uns aos outros.”
O conceito colheu inspiração na obra de Gabriel García Márquez e de outros mestres da solidão, como H. D. Thoreau ou Sylvain Tesson. Mas José Díaz, empresário espanhol de 53 anos, nunca se sentiu sozinho durante aqueles 100 dias, há-de repetir muitas vezes. Existe a solidão que é imposta e aquela que se procura, a dura e a prazerosa, porventura necessária, compara. “Os melhores pensamentos, a máxima inspiração saem sempre de momentos de solidão e de silêncio.” Assume sentir-se mais só em Madrid, em Barcelona, no metro, rodeado de gente, do que entre as sombras da floresta. Ali, é “outra coisa diferente”: é “ausência de pessoas”, mas “nunca solidão”.
Para dar ginástica às cordas vocais, relatava para as câmaras o que ia fazendo, o que ia sentido, onde estava, o que via. Falava com o irmão Tino, umas das primeiras pessoas com quem foi ao Parque de Redes. “Lá não tenho a sensação de que o meu irmão está morto. Sinto que pode estar por aí, falo com ele, sinto a presença dele. É o sítio mais próximo ao meu irmão sem morrer. Gosto muito de lá ir e interagir com ele.”
Subiu à montanha com a ideia de fazer um documentário de natureza. Levou três câmaras fotográficas, duas câmaras de infra-vermelhos, outra de cinema, dois drones e uma Go Pro, presa a um selfie stick, um tripé. “Tinha 120 quilos de material.” Carregava-os todos os dias, de um lado para o outro. Habitualmente, caminhava durante quatro ou cinco horas até ao ponto onde queria filmar, gravava duas ou três horas, regressava à cabana, revia tudo, cuidava da horta, dos animais. Emagreceu “oito ou nove quilos”. “Foi a época em que mais trabalhei na minha vida”, diz. Mas “sarna com gosto não pica”. Não teve tempo para abrir nenhum dos 30 livros que levou.
Nos intervalos das filmagens, escrevia o diário que deu origem a um livro, onde relata toda a experiência e reflecte sobre as emoções, sobre “a importância e a grandeza da natureza”, sobre o pouco respeito que o ser humano lhe tem. “É uma das coisas que dá-me mais voltas à cabeça: onde é que vamos chegar fazendo o que fazemos?” Com “5% de pessimismo” e “95% de realismo”, José acredita que o futuro é “pouco esperançoso”. “Não acabamos com a natureza porque ela é muito resistente, mas não estamos a fazer nada a seu favor.”
Ao dia 100, confessa, estava “muito nervoso”. Ia rever a família, com quem tinha mantido contacto apenas por carta – uma vez por semana, descia a uma cabana mais próxima da povoação para deixar os discos rígidos cheios (no total, mais de 300 horas de gravação, 25TB) e, no dia seguinte, o filho José subia para recolhê-los e levar correspondência da família ou uma das músicas que o irmão Pablo estava a compor para o filme (é dele toda a banda sonora). Estava nervoso porque ia rever o produtor de cinema espanhol José María Morales, com que tinha começado toda esta aventura, e saber se, afinal, tudo o que tinha gravado era “suficientemente aceitável”. Estávamos a 19 de Dezembro de 2015, solstício de Inverno, dia de concerto de música clássica na floresta. “Foi magistral porque passei de estar sozinho e encontrar-me com 300 pessoas.”
No final, nenhuma das filmagens que tinha seleccionado aparece no documentário. É José o protagonista, são as filmagens feitas como rodapé que dão corpo ao filme. “O editor disse-me para fazermos um filme mais humano, em que as imagens não têm importância pela sua qualidade mas pela mensagem que transmitem.” Um documentário de animais seria só mais um documentário de animais. Este é o relato de uma relação entre um homem e a natureza. Metáfora da reaproximação que José quer ver no mundo.