Dois anos depois, a Irlanda do Norte pode voltar a ter governo
Executivo caiu em Janeiro de 2017, com a ruptura entre o Partido Democrático Unionista e o Sinn Féin. Morte da jornalista Lyra McKee terá aproximado os partidos políticos, que vão reunir-se em Maio para tentarem ultrapassar as divisões.
A onda de choque provocada pelo assassínio da jornalista norte-irlandesa Lyra McKee nos motins na cidade de Derry, na semana passada, parece estar a empurrar os partidos políticos para o regresso à mesa de negociações.
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A onda de choque provocada pelo assassínio da jornalista norte-irlandesa Lyra McKee nos motins na cidade de Derry, na semana passada, parece estar a empurrar os partidos políticos para o regresso à mesa de negociações.
Esta sexta-feira, dois dias depois do funeral, o Reino Unido anunciou que tanto os unionistas como os nacionalistas norte-irlandeses estão dispostos a conversar sobre o maior problema político do país na actualidade: como voltar a ter um governo e um parlamento em plenas funções na Irlanda do Norte, ao fim de dois anos e três meses, no meio de um ambiente de desconfiança e de contas a ajustar em relação a um passado violento, tudo isto num clima de nervosismo sobre o “Brexit”?
Numa conferência de imprensa conjunta, esta sexta-feira, os chefes de Governo do Reino Unido e da República da Irlanda anunciaram “um novo processo de conversações políticas” sobre o impasse na Irlanda do Norte – que envolve as três partes, como decorre do acordo de paz de 1998.
“O objectivo destas conversações é o rápido restabelecimento das instituições democráticas ao abrigo do Acordo de Sexta-feira Santa/Belfast – o executivo da Irlanda do Norte, a assembleia e o Conselho Ministerial Norte-Sul –, para que possam servir de forma efectiva toda a população”, disseram a primeira-ministra britânica, Theresa May, e o taoiseach irlandês, Leo Varadkar.
Os dois governantes admitiram que a morte de Lyra McKee, de 29 anos, baleada por um membro de uma facção do Exército Republicano Irlandês no dia 18 de Abril (aparentemente por engano, quando disparava contra a polícia), foi determinante para o regresso às negociações.
“Ao juntarmo-nos a outros líderes políticos na Catedral de Santa Ana, para homenagearmos Lyra McKee, demos expressão à clara vontade de todo o povo destas ilhas de rejeitar a violência e de apoiar a paz e um futuro melhor para todos na Irlanda do Norte.”
May e Varadkar disseram que estão “determinados a trabalhar em conjunto para garantir que o processo seja bem-sucedido”, e anunciaram que as negociações vão começar após as eleições locais na Irlanda do Norte, marcadas para a próxima quinta-feira, 2 de Maio.
Vazio de poder
Em causa está o vazio no Governo e no Parlamento norte-irlandeses desde Janeiro de 2017, quando o então primeiro-ministro adjunto, Martin McGuinness (Sinn Féin, nacionalista), se demitiu, o que levou também à queda da primeira-ministra, Arlene Foster (DUP, unionista), como determina o sistema norte-irlandês de partilha do poder.
McGuinness e o seu Sinn Féin abandonaram o Governo porque a primeira-ministra se recusou a afastar-se enquanto decorria uma investigação sobre um escândalo de incentivos ao uso de energias renováveis, que Arlene Foster geriu quando foi ministra da Economia. Com a saída de Martin McGuinness e a recusa do Sinn Féin em nomear um substituto após as eleições antecipadas, em Março de 2017, a Irlanda do Norte está na prática sem um Governo gerido por representantes eleitos.
“Estamos no nível zombie”, disse em Março a deputada norte-irlandesa Claire Hanna, do Partido Social Democrata e Trabalhista, ao jornal Guardian. “Há uma descrença na nossa capacidade para resolvermos os nossos próprios problemas. O eleitorado foi condicionado a acreditar que este sítio é ingovernável. A polarização nunca esteve tão viva. O vácuo está a deslegitimar a política.”
As divergências entre os dois maiores partidos vão muito além do escândalo das energias renováveis. Os nacionalistas acusam os unionistas de não cumprirem várias promessas eleitorais e de se oporem a questões que tocam na essência das divisões entre uns e outros – entre elas a recusa em aprovar uma lei que daria à língua irlandesa um estatuto igual ao da inglesa.
As tensões dos últimos anos levam alguns especialistas a temerem um regresso da violência, principalmente depois do aparecimento do Novo IRA, entre 2011 e 2012 – uma fusão de antigas pequenas facções do Exército Republicano Irlandês que tem uma forte presença em Derry, onde a jornalista Lyra McKee foi assassinada.
Só este ano, o Novo IRA foi ligado a três casos de violência: a explosão de um carro armadilhado às portas do tribunal de Derry, em Janeiro, sem fazer vítimas; o envio de cinco cartas armadilhas para Londres e Glasgow, que também não fez vítimas; e a morte de McKee, no dia 18 de Abril.
O confronto político e a actividade do Novo IRA tornaram-se ainda mais problemáticos com o impasse em relação ao “Brexit”, que foi reprovado na Irlanda do Norte com 55,8% dos votos totais, divididos entre o “não” dos nacionalistas e o “sim” dos unionistas.
A maior preocupação diz respeito à fronteira entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda, que deixou de ter barreiras físicas em 1998 como parte do processo de paz e reaproximação dos dois lados. Se não houver acordo entre a União Europeia e o Reino Unido para o “Brexit”, as barreiras e o policiamento podem regressar à fronteira e reavivar ainda mais as divisões do passado.