Carta aos adolescentes com saudades de Salazar
Nos 45 anos da democracia, uma proposta para adolescentes baralhados: as cartas de amor para Mário Soares e a lição de Eviatar Zerubavel.
Será que com as cartas de amor escritas durante o salazarismo consigo abanar os adolescentes baralhados sobre a ditadura em Portugal?
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Será que com as cartas de amor escritas durante o salazarismo consigo abanar os adolescentes baralhados sobre a ditadura em Portugal?
Os argumentos factuais e descritivos não resultam. Fala-se da falta de liberdade e respondem que “pelo menos Salazar safou-nos da II Guerra Mundial”. Contrapõe-se que também Espanha, Irlanda, Suécia e Suíça e mais oito países europeus foram neutrais e eles elogiam a “manha” do ditador que negociava com aliados e nazis. Fala-se de presos políticos e respondem que as ocupações ilegais do PREC mostraram que muita gente devia estar na prisão. Fala-se da pobreza e respondem que “Salazar também era pobre e nunca roubou”. Fala-se do analfabetismo e respondem que Salazar fez escolas nas aldeias. Fala-se das mulheres impedidas de votar e respondem com uma piada marialva. Fala-se da guerra colonial e dizem que eram os “princípios da época”. Fala-se do medo das denúncias e respondem que hoje há a “ditadura do politicamente correcto”. Estes adolescentes baralhados andam nas jotas, nas escolas públicas e privadas, nas redes sociais, nos autocarros. Basta estar atento.
Vou usar as cartas que Maria de Jesus Barroso escreveu ao marido, Mário Soares, como argumento final, espécie de golpe baixo, esperando apanhá-los no ponto fraco: o coração. Afinal, a seguir à média para a universidade, essa é a coisa que mais preocupa os adolescentes.
21 Fevereiro 1962, dia do 13.º aniversário do casal. O filho João tinha 13 anos, a filha Isabel 11. “São terríveis injustiças que têm tentado esmagar-nos”, mas “temos de tomá-las como desafio à nossa força moral, como estímulo — doloroso embora! — à fé e à coragem”.
24 Fevereiro 1962: “E tu meu querido, poderás escrever? Ainda te não deram autorização para leituras, pois não? Até amanhã, Querido! Beijo e abraços dos Filhos, Pais e restante família. Para ti sempre os beijos mais ternos da muito, muito tua Maria de Jesus.”
26 Fevereiro 1962: “Está uma noite fria, de chuva. Já todos estão deitados e dormindo. A Isabelinha com os seus cinco bonecos dorme profundamente aqui a meu lado.”
27 Fevereiro 1962: “O teu Amor, o Amor que me ofereces, não fica, felizmente, aprisionado nessas grades tristes que te aferrolham — passa, milagrosamente, através delas, mais puro, mais límpido e mais firme.”
1 Março 1962: “Querido! Tu tens de comer! Estás a passar mal por causa da asma — e devido ao tempo húmido e às péssimas instalações em que te encontras. Se não comes adoeces gravemente. Tu que és tão forte moralmente, que és tão corajoso para aguentar as injustiças, tens de te aguentar fisicamente.”
3 Março 1962: “Passar tanto tempo sem te ver e sem ter notícias tuas custa imenso. Mas paciência, meu Amor, por ti sou capaz de aguentar tudo!”
4 Março 1962: “Meu muito querido Mário, mais um domingo sem sol e sem ti.”
22 Março 1968: “Meu Adorado Amor, Não encontro palavras para te dizer o que sinto neste momento. Mas o que se sobrepõe a toda esta raiva, esta revolta, esta dor incrível de te ver brutalmente separado de nós, acredita meu Amor, que é sobretudo a ânsia de te dizer que te amo com uma força intraduzível, que te adoro, que te admiro, que te quero, meu Amor, mais do que a mim própria. Preciso de te dizer isto, percebes, meu Querido? Mas também quero dizer-te que procuro estar à altura do homem que tive a felicidade de encontrar, que procuro ter coragem e dar a teus filhos e a todos os outros não um espectáculo de desolação, de destruição e abatimento. Procuro mostrar-me digna de ti, meu Querido.”
Entre 1962 e 1974, Maria Barroso escreveu 400 cartas ao marido. Não espanta. Na altura escreviam-se cartas e Soares esteve preso 12 vezes, foi deportado para a ilha de São Tomé e em 1970 acabou por exilar-se em Paris. Esteve preso em 1947, 1949, 1960, 1961, 1962, 1965, 1967… Como hoje nas piores ditaduras africanas, Soares foi preso porque pertencia ao MUD, porque apoiou uma candidatura presidencial contrária ao candidato do regime, porque deu uma entrevista antipática ao Sunday Telegraph. É preciso repetir isto sempre que estamos com adolescentes, baralhados ou não: na ditadura portuguesa, as pessoas eram presas porque incomodavam o regime. Bastava isso.
Escritas de um fôlego, muitas ocupam seis folhas escritas na frente e no verso, mas há outras maiores, como a de 27 de Junho de 1971 que tem 42 páginas, conta Vladimiro Nunes, antigo jornalista e hoje editor da Ponto de Fuga, que as trabalhou e organizou em oito pequenos livros publicados em 2012 com o semanário Sol, quando Maria Barroso tinha 87 anos e Mário Soares 88. Algumas cartas fazem-nos corar. São privadas e no limiar da intimidade explícita. Maria Barroso explicou porque aceitou publicá-las: “Não queremos que ninguém passe pelo que nós passámos”, “não queremos voltar para trás”.
Em Taken for Granted – The remarkable power of the unremarkable (Princeton University Press, 2018), o sociólogo Eviatar Zerubavel fala da dificuldade que temos em reparar “no banal, quotidiano, óbvio, comum, normal… o barulho de fundo, o habitual”. Cita Friedrich Nietzsche, que disse que “é difícil ver aquilo a que estamos habituados” e conta que os antropólogos sociais Daniel Miller e Sophie Woodward precisaram de seis meses a estudar a “prática cultural de usar calças de ganga para perceber que a principal característica dessas calças é serem normais”.
O que é normal, aquilo a que estamos habituados, “vem por defeito”, “é dado como adquirido”, taken for granted. Por isso usam-se as expressões “openly gay” e não “openly straight”, “working mom” e não “working dad”, “career woman” e não “career man”, “family man” e não “family woman”. O banal é os heterossexuais serem abertos sobre a sua sexualidade, os homens trabalharem e terem uma carreira e as mulheres dedicarem-se à família. Como essas categorias não são “especiais”, mas sim “normais”, diz Zerubavel, não é necessário dar-lhe um nome.
O barulho de fundo da democracia, o único que os adolescentes portugueses conhecem, está cheio de histórias de amor que não são interrompidas pela política. Criticamos o primeiro-ministro e não vamos para o Aljube. Namoramos sem medo de o rapaz ir para a guerra ou a rapariga ir para Caxias porque na véspera criticou o Presidente. É taken for granted porque é assim há 45 anos. É invisível, mas também é uma conquista de Abril.