Endogamia e universidades
Sem regulação, transparência e uma participação democrática verdadeiramente alargada, corremos sérios riscos. Tanto mais quando isto se passa nas nossas universidades.
É importante que a sociedade portuguesa preste mais atenção à endogamia. Mas convém também verificar se o termo não esconde problemas cuja ação é melhor identificada por outras palavras.
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É importante que a sociedade portuguesa preste mais atenção à endogamia. Mas convém também verificar se o termo não esconde problemas cuja ação é melhor identificada por outras palavras.
Confesso que sempre me fez alguma confusão a utilização da expressão “endogamia académica”. Endogamia significa reprodução com elevada consanguinidade. Se é verdade que nalguns departamentos universitários podemos encontrar alguns apelidos em comum, a designação correta desse fenómeno, em termos de admissão à carreira, não é endogamia, mas sim nepotismo.
A endogamia académica, enquanto tradução do “academic inbreeding”, tem vindo a ser denunciada quase sempre da mesma forma: um conjunto de estatísticas sobre o número de docentes doutorados na instituição onde prosseguiram carreira, uma acusação sobre o fechamento das universidades e a sugestão de viciação dos concursos de admissão.
Este tipo de associação remonta a 1908 e ao célebre University Administration de Charles Eliot. Contudo, foi só a partir do final dos anos 90 que nalguns países anglo-saxónicos surgiu o discurso que resolveu associar endogamia à receita de “alta rotatividade”.
A ascensão deste ideal condenou docentes e investigadores a serem continuamente migrantes, correndo de cidade em cidade (e, mais tarde, de país em país).
Hoje sabemos que a “alta rotatividade” não corrigiu em nada a autocracia, o clientelismo, nem mesmo o nepotismo, para os quais a palavra endogamia é uma parca metáfora.
Aliás, a “alta rotatividade” veio até a acentuar outros problemas, que vão da sujeição a assédio à pilhagem de trabalho.
É estranho que nos estudos sobre “endogamia académica” poucas ou raras vezes sejam utilizados os termos clientelismo e nepotismo. Mais estranho ainda porque não são raras as vezes em que no mundo académico somos confrontados com situações deste tipo, que possuem consequências tão ou mais graves.
Muitos são os colegas que escrevem regularmente ao SNESup pedindo ação sobre concursos fraudulentos, sendo que já efetuámos várias campanhas pela transparência e denunciámos diversos “concursos por fotografia”. Contudo, à medida que o assunto foi saindo da ordem do dia, também as nossas denúncias ao Ministério Público e à Inspeção Geral de Educação e Ciência (IGEC) foram caindo em arquivamentos sucessivos.
Faz falta um regulador ativo e empenhado. Em especial na IGEC, tornaram-se demasiado habituais os despachos de arquivamento, invocando abrigo pela autonomia universitária.
Esses arquivamentos passaram uma ideia de total impunidade. A exceção é o Tribunal de Contas, pelo que a ética deixou o injusto, ou o ilegal, para se resumir ao financeiro.
Recentemente, soube de um jovem investigador que declarava que desistia de Portugal, após ter sido rejeitado em mais um concurso viciado. Tinha o melhor currículo e conseguiu a melhor classificação, mas a entrevista passou uma candidata com um apelido “familiar” de 10.º para 1.º lugar.
A quantidade de talento que temos perdido à conta disto não é pequena. Apesar disso, os mecanismos de equilíbrio institucional (os célebres “checks and balances”) são cada vez mais fracos e diminutos.
Dado que há estudos europeus que destacam o problema do clientelismo e como o mesmo afeta a falta de qualidade da democracia (destacando negativamente Portugal e Espanha), é bom que pensemos um pouco mais sobre como estão estruturadas as nossas instituições.
Quem pensava que a crise da dívida não nos alcançava é quem hoje pensa que estamos a salvo da crise da democracia.
Sem regulação, transparência e uma participação democrática verdadeiramente alargada, corremos sérios riscos. Tanto mais quando isto se passa nas nossas universidades.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico