Das famílias no Governo aos amigos nas universidades
Por muitos concursos públicos que se façam, a velha devoção ao vício da cunha, do amigo ou do parente continua incólume.
A polémica das nomeações de familiares no Governo teve o mérito de revelar a existência de uma bolha na política que não contempla a transparência, a igualdade de oportunidades, o mérito e muitas outras exigências éticas que distinguem uma democracia liberal de uma república das bananas. Mas é pura ilusão acreditar que essa endogamia se cultiva apenas no espaço fechado da alta política.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
A polémica das nomeações de familiares no Governo teve o mérito de revelar a existência de uma bolha na política que não contempla a transparência, a igualdade de oportunidades, o mérito e muitas outras exigências éticas que distinguem uma democracia liberal de uma república das bananas. Mas é pura ilusão acreditar que essa endogamia se cultiva apenas no espaço fechado da alta política.
O favorecimento de familiares, de amigos ou de todos os que demonstram obediência cega aos chefes é uma atitude transversal à sociedade portuguesa. Quando até as universidades se afundam na preservação do espaço fechado dos ex-alunos, dos amigos ou daqueles que dão provas de reciprocidade aos favores prestados, como hoje exemplificamos no PÚBLICO, deixa de fazer sentido atribuir as culpas originais do problema aos políticos. Torna-se obrigatório reconhecer que os políticos acabam por ser tributários dos padrões sociais que se cultivam por todo o lado.
A endogamia no Governo ou o amiguismo nas autarquias ou universidades é grave em primeiro lugar porque cria em todos os que não fazem parte desse círculo de privilégios a sensação de que Portugal é ainda um país de ordens rígidas. Não faz sentido a uma pessoa competente acreditar que pode aceder a uma direcção-geral, quando se suspeita que os concursos são viciados. Não se estimula o saber levando os jovens a estudar nas melhores universidades do mundo, quando se sabe que de regresso ao país esses jovens terão as suas possibilidades de carreira limitadas – 99% dos docentes do curso de Direito da Universidade de Lisboa doutoraram-se na instituição.
Por muitos concursos públicos que se façam, por muitas instituições como a Cresap que se criem, a velha devoção ao vício da cunha, do amigo ou do parente continua incólume passados todos estes anos.
Esta cultura da protecção do próximo para que o próximo proteja o patrono no futuro não deixa no ar apenas essa insuportável sensação de que o país é terreno exclusivo de alguns poucos. Ao limitar o acesso a cargos relevantes aos que têm talento e saber mas vêm de fora, essa cultura trava a inovação, a concorrência, a abertura – e, claro está, a cidadania.
Ao expor-se a parentela no Governo gerou-se uma indignação cívica que, pelo menos durante algum tempo, limitará as nomeações de primos ou cunhados. Era bom que essa indignação se alargasse às autarquias ou às universidades. Um país talhado à medida de primos ou de amigos não é um país decente. É apenas um couto tribal que jamais dará expressão ao que a sociedade portuguesa hoje vale de facto.