Casa do Douro: um livro reaberto
A restauração da Casa do Douro devolve representação, dignidade e esperança a quem grangeia as vinhas com o seu suor.
Era expectável a indignação dos grandes exportadores com a recente restauração da Casa do Douro, como associação representativa da produção vitivinícola duriense, no Parlamento.
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Era expectável a indignação dos grandes exportadores com a recente restauração da Casa do Douro, como associação representativa da produção vitivinícola duriense, no Parlamento.
“Limitaram-se a fazer copy-paste de textos antigos para ressuscitar um modelo que morreu e não parece fazer sentido para uma região que encontrou novas formas de se organizar”, afirma Jorge Dias, CEO da Gran Cruz, o maior exportador de vinho do Porto, com 30% de quota de mercado, cuja empresa faturou, em 2018, 90 milhões de euros.
Paul Symington, cuja família explora mil hectares de vinha no Douro e é dono de grandes marcas exportadoras, concorda com as críticas. Outros se seguiram no azedume. Agitam o perigo de “inconstitucionalidade” e reclamam intervenção do Presidente da República, tal é o desespero.
Percebe-se. As grandes casas exportadoras não têm qualquer interesse numa regulação do mercado com uma intervenção direta dos produtores. Preferiam que a produção de vinho do Porto se realizasse sem controlo.
A liberalização do mercado criou enormes dificuldades sobretudo aos pequenos produtores e o agravamento da situação está a lançar milhares na agonia económica. As consequências são notadas na crise social que alastra na região e na tendência para a concentração da propriedade nas mãos das grandes casas exportadoras.
São 35 mil explorações para cerca de 43 mil hectares, distribuídas por mais de 140 mil parcelas. A grande maioria tem menos de um hectare de vinha. São eles os obreiros da extraordinária paisagem do Douro Vinhateiro. A restauração da Casa do Douro devolve representação, dignidade e esperança a quem grangeia as vinhas com o seu suor.
As grandes quintas, ligadas a empresas exportadoras, correspondem a menos de 2% das explorações. Reclamam e chegam a dizer que é inconstitucional a inscrição obrigatória na Casa do Douro, para poderem fazer vinho do Porto. Sempre foi assim, desde que foi aprovada a Constituição de 1976. Durante 38 anos, até 2014, ninguém suscitou a inconstitucionalidade da inscrição obrigatória. Descobriram-na agora... Quantos milhares de profissionais têm de se inscrever numa associação ou numa ordem para poderem exercer a sua profissão?
O que move os exportadores contra a restauração da Casa do Douro não é a inscrição obrigatória. Isso é um pretexto. O que os atemoriza é terem de enfrentar todos os produtores, juntos numa única associação com funcionamento democrático.
A Casa do Douro era a entidade reguladora, constituída pela associação dos produtores. Decidia sobre o “benefício”, a quantidade de vinho a ser transformado em vinho do Porto, comprava produção em anos de excesso e colocava-a no mercado em anos de escassez. Defendia a produção e procurava que houvesse equilíbrio nos preços pagos pelo comércio à viticultura.
Esta organização da produção começou a ser desmantelada, nos anos 80. Primeiro foi o estrangulamento financeiro, depois tiraram-lhe a generalidade das funções públicas que lhe conferiam relevância. Atribuíram-nas ao Instituto do Vinho do Douro e do Porto (IVDP), sob orientação do Governo. Erros de gestão agravaram o problema.
Não é difícil de adivinhar que interesses pontificaram nas decisões. Em 2014, o governo PSD/CDS-PP acabou por extinguir a Casa do Douro. Num concurso feito à medida, entregou o seu património a uma federação da CAP, minoritária e montada à pressa.
A liberalização significou poder total para o grande comércio. Com a Casa do Douro desmantelada, os preços na produção seriam mais esmagados. Ficariam nas adegas cooperativas milhares de pipas, para forçar a baixa do preço pago aos produtores. Os pequenos vitivinicultores não conseguiriam suportar novos aumentos dos custos dos fatores de produção.
O país tem de conhecer este drama, por cima das imagens turísticas de um Douro património da humanidade. Não podemos deixar calar a fratura social que cava fundo nas terras do Douro. Restaurar a Casa do Douro é da mais elementar justiça e um instrumento imprescindível para a Região Demarcada do Douro e o desenvolvimento regional com mais coesão social.
Há dias, um viticultor de Alijó dizia-me que “a restauração da Casa do Douro abre de novo o livro”. Cabe aos produtores do Douro escrever as próximas páginas.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico