Quem quer ajudar a transcrever cartas históricas de botânica?
O projecto de ciência-cidadã Cartas da Natureza procura tratar e disponibilizar informação do arquivo do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra. A partir dos arquivos já digitalizados, pede-se ajuda a todos.
A 18 de Maio de 1919, o naturalista Gonçalo Sampaio enviou um postal a Júlio Henriques, director do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra (JBUC). Nele faz menção a uma planta, a Astragalus algarbiensis, que já então era difícil encontrar em Portugal e que hoje se crê extinta. O naturalista tinha uma dúvida. Queria saber se a planta “tem as estípulas ligadas (pelo lado oposto ao pecíolo) ou se, pelo contrário, as tem livres”. Isto porque a informação que constava dos seus registos indicava que a planta tinha as estípulas livres, mas os dados do botânico Pereira Coutinho referiam que estavam ligadas. “Equívoco que preciso de ver esclarecido”, referia Gonçalo Sampaio, uma vez que estava a organizar uma chave dicotómica (uma forma de identificação espécies), explicava na missiva.
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A 18 de Maio de 1919, o naturalista Gonçalo Sampaio enviou um postal a Júlio Henriques, director do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra (JBUC). Nele faz menção a uma planta, a Astragalus algarbiensis, que já então era difícil encontrar em Portugal e que hoje se crê extinta. O naturalista tinha uma dúvida. Queria saber se a planta “tem as estípulas ligadas (pelo lado oposto ao pecíolo) ou se, pelo contrário, as tem livres”. Isto porque a informação que constava dos seus registos indicava que a planta tinha as estípulas livres, mas os dados do botânico Pereira Coutinho referiam que estavam ligadas. “Equívoco que preciso de ver esclarecido”, referia Gonçalo Sampaio, uma vez que estava a organizar uma chave dicotómica (uma forma de identificação espécies), explicava na missiva.
É possível recuperar este episódio a partir de um documento do acervo do JBUC. O postal, tal como outros cinco mil documentos, foi digitalizado a partir dos arquivos da instituição. Entre cartas, postais e outros documentos, parte do acervo do Jardim Botânico foi sendo digitalizado entre 2004 e 2010 para formar a Biblioteca Digital Botânica, actualmente disponível online. Esse foi o primeiro passo do processo. Agora, o Jardim Botânico está a pedir a colaboração de todas as pessoas para extrair e organizar a informação que está nos documentos.
O projecto Cartas da Natureza tem como objectivo transcrever os documentos das colecções e arquivos digitalizados, uma vez que muitos são manuscritos e não é possível pesquisar o seu conteúdo por computador. Daí que muitos dos ficheiros estejam alojados e já disponíveis, desde a semana passada, na plataforma Zooniverse, um projecto de ciência participativa. Cada utilizador da plataforma pode escolher um documento para transcrever e colaborar na transcrição dos documentos.
Algumas das cartas foram sendo analisadas no âmbito de investigações científicas, explica o director do JBUC, António Gouveia, mas tinham de ser percorridas uma a uma para se perceber o seu conteúdo. É esse trabalho que o Cartas da Natureza quer agilizar. Para constar da plataforma Zooniverse, o processo de selecção de um projecto é semelhante ao processo de submissão de um artigo científico, refere António Gouveia, acrescentando que é revisto por pares, o que assegura a precisão do resultado final.
O arquivo do Jardim Botânico ainda não foi todo digitalizado nem está ainda todo online. “Estamos a falar de milhares de imagens em várias línguas”, descreve o director. A maioria está em português, mas, entre os 1100 correspondentes espalhados pelo mundo que escreviam a responsáveis do Jardim Botânico de Coimbra, encontram-se também cartas noutros idiomas, como espanhol, francês, italiano, alemão e inglês.
Para já, está disponível o intervalo entre 1870 e 1928 e Portugal não é o único território representado. Muitas das cartas “vinham das ex-colónias, seguindo depois para outros centros de conhecimento europeus”, explica António Gouveia. Portugal acabava por servir de porta de entrada na Europa. A partir de determinado ponto no século XVIII, a diversidade começou a ser tal que exigia especialização em determinadas áreas. Por exemplo, para saber mais sobre uma planta da família dos malmequeres, os botânicos “escreviam a O. Hoffman, em Berlim”, para que ele a analisasse. “As cartas mostram essas dinâmicas de produção de conhecimento botânico”, afirma António Gouveia.
Os registos não são apenas manuscritos. Algumas das cartas são acompanhadas por desenhos ou mesmo material biológico, como são exemplos os fetos encaminhados por Estácio da Veiga, em 1886, a Júlio Henriques, para que ele confirmasse a sua identificação. Há também um remetente de Viseu que, em 1895, encaminhou uma lasca de castanheiro, retirada de um quadro (não identificado) de Grão Vasco, fazendo menção às dificuldades pelas quais passou para a obter.
Com este projecto, desenvolvido na Cátedra UNESCO em Biodiversidade e Conservação para o Desenvolvimento Sustentável, o Jardim Botânico pretende reunir informação sobre espécies referidas na correspondência que existia não apenas entre cientistas formais, mas também “entre vários naturalistas amadores em vários pontos do país e do mundo”, menciona António Gouveia. Esses dados podem ser importantes para “definir planos de conservação de espécies” na actualidade.
Para além de dar uma ideia do habitat das espécies e do clima da época, os documentos ajudam igualmente a contextualizar exemplares de herbários ou de espécies mais antigas do jardim. Tratando-se de correspondência entre pessoas conhecidas, há também nelas pequenos dramas, a vida quotidiana, episódios pessoais. O número de documentos do projecto Cartas da Natureza vai continuar a aumentar.