Por que não foi a PIDE/DGS um dos primeiros alvos do 25 de Abril?

Há versões desencontradas que sugerem ter havido provavelmente agendas diferentes e actuações divergentes da parte dos militares na tomada da sede da DGS, como na libertação dos presos políticos em Caxias.

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Alfredo Cunha

A aparente ignorância, no seio da Polícia Internacional de Defesa do Estado/Direcção-Geral de Segurança (PIDE/DGS), do que se passava no Movimento dos Oficiais das Forças Armadas (MOFA, mais tarde MFA) é objecto de controvérsia historiográfica, como o é o facto de a sede dessa polícia política, na Rua António Maria Cardoso (AMC), em Lisboa, não ter sido um dos primeiros alvos do movimento militar, em 25 de Abril de 1974.

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A aparente ignorância, no seio da Polícia Internacional de Defesa do Estado/Direcção-Geral de Segurança (PIDE/DGS), do que se passava no Movimento dos Oficiais das Forças Armadas (MOFA, mais tarde MFA) é objecto de controvérsia historiográfica, como o é o facto de a sede dessa polícia política, na Rua António Maria Cardoso (AMC), em Lisboa, não ter sido um dos primeiros alvos do movimento militar, em 25 de Abril de 1974.

Há versões desencontradas que sugerem ter havido provavelmente agendas diferentes e actuações divergentes da parte dos militares na tomada da sede da DGS, como na libertação dos presos políticos em Caxias. Enquanto elementos da Marinha pretenderam ocupar a DGS, para extingui-la, outros, do Exército, teriam agido sob ordens do general Spínola, com a missão de não libertar todos os presos políticos, manter provavelmente a polícia política, embora com outra chefia, sendo mesmo nomeado pelo general Rogério Coelho Dias.

No Anexo de transmissões ao plano geral das operações do MFA, a sede da DGS e os fortes de Caxias e de Peniche surgiam como alvos, com um toque de humor, pois tiveram respectivamente os nomes de códigos “Moscovo”, “Pequim” e “Varsóvia”. Já, no Plano Geral de Operações, o major Otelo Saraiva de Carvalho previra a tomada da sede da DGS por um grupo de comandos à civil. Este comandante operacional do “25 de Abril” diria que o plano de operações foi abandonado devido a oposição do major Jaime Neves, oficial dos comandos que considerou muito perigosa a tomada da sede da DGS, de onde se podia esperar uma reacção armada.

Noutro livro, Otelo Saraiva de Carvalho afirmaria que, além “da recusa de Jaime Neves”, fora também informado “do ‘borreganço’ do Regimento do Infantaria (RI) 1, da Amadora”, unidade sob o comando do capitão Coelho Lima. Ao ficar “sem tropa de reserva para colmatar a falha de Jaime Neves na Rua António Maria Cardoso”, disse ter sido obrigado a arranjar outra solução, acabando os fuzileiros e os pára-quedistas por se deslocarem, respectivamente, à Rua António Maria Cardoso e ao Forte de Caxias.

A chegada dos fuzileiros à sede da DGS e o confronto com Alpoim Calvão

Sob o impulso dos comandantes Almada Contreiras, coordenador do MFA na Marinha, e Vítor Crespo, o elemento dessa arma no posto de comando da Pontinha, o almirante Pinheiro de Azevedo tomou decisões que resultaram na tomada da PIDE/DGS. Almada Contreiras, responsável pelo “corte radical com os pilares do Estado Novo”, segundo Luísa Tiago de Oliveira, telefonara pelas seis horas da manhã de dia 25 a Pinheiro de Azevedo. Dando o falso nome de “tenente Barata”, solicitou o envio de forças navais para a Rua AMC e Pinheiro de Azevedo ordenou essa missão ao capitão-tenente Eugénio Cavalheiro. Este contaria que, cerca do meio-dia de 25 de Abril, apareceu do interior da sede da DGS Alpoim Calvão, segundo o qual os elementos da polícia estariam armados e seria melhor retirar-se.

O próprio Guilherme de Alpoim Calvão confirmaria ter estado na sede da DGS, em 25 de Abril de 1974, por inerência das suas funções enquanto comandante da Polícia Marítima, explicando ali ter encontrado “os agentes muito agitados, com armas e granadas de mão” e, no exterior, o seu colega Eugénio Carvalheiro, com uma força de fuzileiros para tomar o edifício. Confirmou ter aconselhado Cavalheiro a partir e ambos terem telefonado “ao tipo que o comandava, o Vítor Crespo a partir da Pontinha, que lhe disse para retirar do local”.

O cerco à sede da DGS e a rendição da polícia política, após matar portugueses

Na véspera, na sede da DGS, onde estavam encurralados cerca de 200 a 300 elementos dessa polícia, face às notícias sobre movimentações populares, o major Silva Pais, director da DGS, ordenou que, caso a situação atingisse “acuidade”, fossem disparados “uns tiros para o ar”. Como se sabe, os tiros não foram “para o ar”, nos dois tiroteios, o primeiro dos quais entre as 13h30 e as 15h, e o segundo, pelas 20h10 horas. No total, foram atingidas 45 pessoas e mortos, pela DGS, João Guilherme de Rego Arruda, estudante de Filosofia, 20 anos, de São Miguel, Açores; Fernando Carvalho Giesteira, empregado de mesa, 17 anos; José James Harteley Barneto, escriturário, 38 anos, que deixou quatro filhos; e Fernando Luís Barreiro dos Reis, soldado na 1.ª Companhia Disciplinar de Penamacor, 23 anos, pai de duas crianças.

Pode-se dizer que os acontecimentos, com feridos e mortos, na Rua António Maria Cardoso, tal como a libertação dos presos políticos de Caxias, representaram dois pontos de não retorno do “25 de Abril”, pois, a partir de então, tornou-se claro que a PIDE/DGS não poderia continuar na chamada “metrópole”, muito devido ao papel de centenas de pessoas que acorreram ao local. Esses acontecimentos marcariam também os eventos que ocorreriam posteriormente e transformariam um golpe de Estado militar num processo revolucionário com a participação de civis.

Otelo Saraiva de Carvalho contaria que o Regimento de Cavalaria 3 cercou a sede da DGS, mas, pelas 22h, um elemento dessa polícia saiu para a rua com as mãos no ar. Tratou-se de António Lage, que entrara em pânico, fugindo, e fora morto por um militar do Regimento de Cavalaria 3. Na chefia dessa unidade militar estava o tenente-coronel Andrade Moura, que conseguiria, “com muito custo, colocar a viatura blindada na António Maria Cardoso”. Andrade Moura afirmou ter recebido uma comunicação do “general Spínola, para não actuar”, na Rua AMC, pois este general já teria entrado em contacto com o director da DGS e que iria ser enviada “uma companhia de reforço”, do RI1.

Andrade Moura entregou o comando naquele local ao major Campos de Andrada, oficial de Cavalaria também incumbido de se dirigir à sede da DGS, “munido da autoridade emanada do general mas sem efectivos militares próprios”. Segundo acrescentaria Andrada, ao chegar à Rua AMC, fora abordado pelo comandante Costa Correia, ao comando de uma companhia de fuzileiros, que lhe teria pedido para o acompanhar, no que seria o episódio histórico da rendição da polícia política.

Ao saber, no posto de comando, da Pontinha, pelas 20h30 de 25 de Abril, Otelo Saraiva de Carvalho pedira a Spínola, já após a rendição de Marcello Caetano, que ordenasse ao ex-ministro do Interior, César Moreira Baptista, a rendição da DGS. O comandante Vítor Crespo, do MFA, relataria ter assistido à conversa telefónica “muita séria” de Spínola com Moreira Baptista e que, após alguma tergiversação deste, o director da DGS, “entrincheirado na António Maria Cardoso”, declarou-se “imediatamente disposto a capitular”. Já o próprio Vítor Crespo mobilizara entretanto um corpo de fuzileiros navais, sob comando do 1.º tenente Vargas Matos, que se dirigiu à sede da DGS, em Lisboa, já cercada pelo Regimento de Cavalaria 3 de Estremoz.

Pelas 23h de 25 de Abril, também o capitão-tenente Costa Correia, sob ordens de Almada Contreiras, se dirigiu à Rua António Maria Cardoso, ao comando de uma companhia e um destacamento de cem fuzileiros. Na descrição de Otelo Saraiva de Carvalho, cerca das 7h30 de 26 de Abril, Costa Correia e Campos Andrada conferenciaram com agentes da DGS, capturados no Governo Civil, na Rua Capelo, escolhendo um intermediário. Cerca de uma hora depois, Silva Pais e o seu pessoal renderam-se. Costa Correia e Campos Andrada entraram no edifício da sede da DGS, pelas 9h30, juntando-se a estes e a Vargas de Matos, já depois das dez horas, o já referido Andrade Moura e o major Alberto Ferreira.

Este diria que, na manhã de dia 26, o major Campos de Andrada lhe comunicara ter ordens para “tomar conta da DGS, para a entregar à Polícia Judiciária, por ordem do general Spínola”. Na sua versão, Alberto Ferreira e forças da sua companhia de Estremoz teriam sido os primeiros a penetrar na DGS. Após dar uma “volta pelas instalações”, encontrara no átrio “Campos de Andrada, falando com Costa Correia, oficial de Marinha”, o qual dissera ter ordens para “ficar a controlar aquela organização”. Os oficiais spinolistas Alberto Ferreira e Campos Andrada telefonaram então para a Pontinha, onde lhes foi comunicado que seria o “pessoal da Marinha a tomar conta da sede da DGS”.

Bibliografia

Araújo, António (2005), O Fim da PIDE/DGS: narrativa de um passado recente, Atlântico, partes 1 e 2, n.º 5 e 6, Julho e Setembro

Bernardo, Manuel A. (1999), Equívocos e Realidades. Portugal 1974-1975, 2 vols., Lisboa: Nova Arrancada

Carvalho, Otelo Saraiva de (2011), O Dia Inicial, Lisboa: Ed. Objectiva

Jacinto Godinho, Os Últimos Dias da Pide, série documental televisiva de dois episódios, transmitida pela RTP, em 25 e 26 de Abril de 1974

Oliveira, Luísa Tiago de Oliveira (2014), O Fim da PIDE/DGS e a Libertação dos Presos Políticos, Militares e Política. O 25 de Abril, Lisboa: Estuário/História