O referendo que pode colar Sissi ao poder também pode ser o seu “erro trágico”
Entre sábado e segunda-feira, os eleitores egípcios vão dizer se aprovam, ou não, uma proposta de revisão constitucional muito favorável ao Presidente Sissi. Mas que pode vir a prejudicá-lo mais tarde, ao dar mais poder aos militares.
Em pouco mais de dois meses, entre Fevereiro e Abril, o Presidente do Egipto e os seus aliados políticos no Parlamento abriram caminho a uma revisão da Constituição que pode manter o antigo general Abdel Fatah al-Sissi no poder até 2030. As alterações vão ser votadas em referendo entre sábado e segunda-feira, e poucos duvidam do resultado – ainda antes da aprovação da proposta pelos deputados, na terça-feira, no Cairo e em outras cidades já havia cartazes a apelar ao voto no “sim”.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Em pouco mais de dois meses, entre Fevereiro e Abril, o Presidente do Egipto e os seus aliados políticos no Parlamento abriram caminho a uma revisão da Constituição que pode manter o antigo general Abdel Fatah al-Sissi no poder até 2030. As alterações vão ser votadas em referendo entre sábado e segunda-feira, e poucos duvidam do resultado – ainda antes da aprovação da proposta pelos deputados, na terça-feira, no Cairo e em outras cidades já havia cartazes a apelar ao voto no “sim”.
O processo começou no dia 5 de Fevereiro, quando a Câmara dos Representantes do Egipto nomeou um grupo de deputados, apoiantes do Presidente Sissi, para escreverem o texto das propostas.
Um dos autores, o deputado Mohammed Abu Hamed, disse à agência AFP, na altura, que a proposta de revisão constitucional tinha como objectivo permitir que o antigo general pudesse “continuar com as suas reformas”.
Hamed e os co-autores da proposta elogiaram as “importantes medidas políticas, económicas e de segurança” tomadas por Sissi nos últimos seis anos, desde que liderou um golpe de Estado militar no auge de protestos populares contra o primeiro Presidente do Egipto eleito democraticamente, Mohammed Morsi.
“Esta proposta partiu dos representantes do povo, como sinal de gratidão pelo papel histórico desempenhado pelo Presidente”, disseram os deputados do grupo conhecido como Apoia o Egipto.
Em resposta, o Movimento Democrático Civil, que junta partidos liberais e do centro-esquerda, chamou à iniciativa do Parlamento e do Presidente Sissi “um assalto à democracia”, e apelou aos eleitores que “quebrem a barreira de silêncio” e votem “não” no referendo.
Mandatos de seis anos
Em causa estava o alargamento dos mandatos presidenciais de quatro para seis anos, o que permitiria ao antigo general manter-se no poder por mais 15 anos, até 2034 – o seu actual mandato termina em 2022, e depois seria autorizado a candidatar-se mais duas vezes, a mandatos de seis anos.
Mas a proposta de alteração da Constituição que chegou ao Parlamento esta semana, e que foi aprovada na terça-feira com 531 votos a favor, 22 contra e uma abstenção, era um pouco diferente. Os mandatos passam de quatro para seis anos, mas a nova lei tem efeitos imediatos – o actual mandato do Presidente Sissi é prolongado até 2024 e o antigo general pode candidatar-se outra vez, nesse ano, a um novo mandato de seis anos, até 2030.
Com a aprovação no Parlamento, segue-se a realização de um referendo em todo o país, marcado para sábado, domingo e segunda-feira – o que deixou aos eleitores três dias para assimilarem as propostas, já que os egípcios que vivem no estrangeiro começaram a votar esta sexta-feira.
Papel dos militares
Mas o alargamento dos mandatos presidenciais não é a única alteração constitucional que vai a votos nos próximos dias. Em causa está também a criação de uma segunda câmara no Parlamento egípcio, o Senado, com 180 membros – 60 deles nomeados pelo Presidente.
A revisão prevê também que seja o Presidente a escolher os principais juízes e o procurador-geral, a partir de um grupo seleccionado pelo poder judicial, e dá-lhe o poder para nomear um ou mais vice-presidentes.
É também criada uma quota mínima de 25% para a representação das mulheres no Parlamento.
Mas há outra proposta muito importante, que poderá ter influência no futuro político do próprio Presidente Sissi: a expansão do papel dos militares na Constituição do Egipto.
As Forças Armadas, que foram determinantes nas transições de poder no país – incluindo no golpe de 2013, que levaria Sissi à Presidência nas eleições de 2014 –, passam a ter como obrigação “proteger a Constituição e a democracia e a caracterização fundamental do país e da sua natureza civil, bem como as conquistas do povo e os direitos e as liberdades dos indivíduos”.
“Sissi está a preparar um golpe constitucional que lhe permite manter-se no poder até 2034. Mas, ao fazê-lo, cometeu um erro trágico”, disse Bahey Eldin Hassan, fundador do Instituto para os Estudos dos Direitos Humanos, no Cairo, num texto publicado no site Orient XXI.
“Não só está a dar aos militares uma cobertura constitucional para o depor, como deu aos seus opositores, dentro e fora do regime, um objectivo que aproxima as suas divisões irreconciliáveis.”
Ou seja, é um feitiço que pode virar-se contra o próprio feiticeiro, segundo Hassan: “As experiências de anteriores presidentes egípcios que alteraram a Constituição para consolidarem o seu poder mostraram que acabaram por perdê-lo.”
Para a oposição no Egipto, a revisão constitucional proposta pelos aliados de Sissi põe em causa o princípio da transição pacífica do poder, e foi apresentada como um facto consumado. O Governo diz que o processo foi discutido a nível local, e que os eleitores foram esclarecidos e apoiaram as propostas, mas a organização não-governamental NetBlocks, que monitoriza a censura na Internet, diz que as autoridades egípcias bloquearam 34 mil sites que levavam a uma petição pública contra as alterações constitucionais.
“Se querem que os vossos filhos e netos vivam num país moderno e democrático, com uma transição pacífica de poder, esta não é a revisão que querem”, disse esta semana, no Parlamento egípcio, Haitham e-Hariri, um dos 22 deputados que votaram contra a proposta.