Os sonhos e os pesadelos da Europa
A Europa atual, ou com maior rigor a União Europeia, continua a ser este reduto de “Vénus” num mundo cada vez mais de “Marte”. Todavia, ela confronta-se com vários pesadelos.
Há pouco tempo, um político francês, Pascal Lamy, disse que “a Europa faz-se dos seus sonhos e dos seus pesadelos”.
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Há pouco tempo, um político francês, Pascal Lamy, disse que “a Europa faz-se dos seus sonhos e dos seus pesadelos”.
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial até recentemente, a Europa fez-nos sonhar. De um continente onde praticamente não havia nada para além da miséria, da fome, de paisagens bombardeadas, cidades devastadas, campos sem um único sinal de vida e onde tudo e todos pareciam exaustos, tornou-se um grande espaço de liberdade, paz, lei, prosperidade, diversidade e solidariedade. Vale a pena fazer um exercício muito simples, inspirado em Timothy Garton Ash: comparar a realidade europeia de 1945 com a atual.
Em 1945, apenas quatro países podiam ser considerados democráticos (Grã-Bretanha, Suíça, Suécia e Irlanda). Hoje, praticamente a quase totalidade dos europeus é livre, o que não tem precedentes na história do continente.
Em 1945, os europeus matavam-se uns aos outros em Berlim, Estalinegrado ou Kursk. Hoje, a Europa é a região mais pacífica do mundo, tendo transferido as suas batalhas para os campos de futebol do Parque dos Príncipes ou do Allianz Arena.
Em 1945, o Estado de direito era a exceção, ou era muito imperfeito. Hoje, a esmagadora maioria dos europeus vive no que tem sido chamado uma “comunidade da lei”. Ninguém discute que no espaço da UE homens e mulheres, ricos e pobres, crentes e ateus são à partida iguais perante a lei.
Em 1945, as fotografias e os documentários mostravam uma Europa miserável, desolada e exausta. Hoje, apesar da recente crise que atingiu dolorosamente vários países da União Europeia, seja qual for o indicador de bem-estar que se escolha como referência chega-se sempre à conclusão de que europeus nunca viveram materialmente tão bem: os rendimentos per capita nunca foram tão elevados, a esperança média de vida é a maior de sempre da história, o nível de mortalidade infantil é o mais baixo, o analfabetismo é praticamente uma memória do passado.
Em 1945, os europeus matavam-se em nome das nacionalidades, das etnias, das culturas. Hoje, apesar do ressurgimento dos nacionalismos, da xenofobia e do racismo, em mais nenhum continente se encontra uma forma tão avançada de integração da diversidade com respeito pela diferença. Um bom exemplo disso é o Programa Erasmus, que permite aos jovens de universidades de vários países estudarem durante um período de tempo num outro Estado membro, conhecendo assim não só as suas realidades académicas, mas também as suas especificidades culturais, ainda que se mantendo no quadro geral de referência do seu país de origem.
Em 1945, a Europa era constituída por Estados egoístas envolvidos numa luta de todos contra todos. Hoje, apesar da crise que viveu nos últimos anos, a União Europeia continua a ter como valor mais distintivo a solidariedade entre todos. O primeiro pilar desta solidariedade é o Estado Social Europeu, uma combinação de criação de riqueza com justiça e Segurança Social. O segundo pilar consiste na solidariedade dos países mais ricos para com os mais pobres, expressa por exemplo em décadas de concessão de fundos comunitários.
A Europa atual, ou com maior rigor a União Europeia, continua a ser este reduto de “Vénus” num mundo cada vez mais de “Marte”. Todavia, ela confronta-se com vários pesadelos, desde a chamada “recessão democrática” à (re)emergência dos nacionalismos e dos populismos, do colapso dos sistemas políticos tradicionais em vários países à ascensão da extrema-direita e da extrema-esquerda, do empobrecimento da classe média às crescentes desigualdades, da crise dos refugiados às ameaças internas e externas à sua segurança, da perda de influência no sistema internacional à transferência da riqueza e do poder para a Ásia. E, claro, o suicídio do Reino Unido com o “Brexit”.
Como referiu Lamy, temos de saber aproveitar os nossos sonhos e os nossos pesadelos para continuar a fazer a integração europeia, usando-os como base de um projeto de futuro, virado para uma sociedade de conhecimento, inovação, bem-estar, coesão e segurança.
Uma sociedade europeia líder no ensino e na cultura, contando com várias universidades nos lugares de topo dos principais rankings mundiais. Algumas dessas universidades podem e devem ser portuguesas, o que, de resto, já vai sucedendo.
Uma sociedade europeia líder na inovação, na ciência e tecnologia, com unidades de investigação de referência, vários dos melhores “cérebros” do mundo, capaz de produzir um cada vez maior número de artigos científicos e de patentes e de dominar na criação de empresas tecnológicas. Portugal tem condições para, a médio prazo, se constituir como um centro de alguns clusters internacionais de conhecimento e inovação que podem beneficiar muito o seu desenvolvimento económico, social e cultural.
Uma sociedade europeia líder na formação profissional, capaz de ter os trabalhadores mais qualificados do mundo. A Europa só poderá voltar a ganhar competitividade internacionalmente apostando em pessoas altamente qualificadas, bem pagas e motivadas. Portugal tem demonstrado que é capaz de ser aqui bem sucedido, seja através de exemplos nacionais como a Autoeuropa, seja pelos exemplos dos muitos portugueses que trabalham no exterior em setores muito exigentes.
Uma sociedade europeia de “prosperidade partilhada” e de coesão, em que não existem divisões entre ricos e pobres, Norte e Sul, Leste e Oeste, católicos e protestantes. Depois de ter cumprido um muito difícil programa de ajustamento de uma maneira reconhecida por todos, Portugal tem uma legitimidade grande para defender as suas posições no âmbito da reforma da União Económica e Monetária e do Quadro Financeiro Plurianual 2021-2027, sendo neste último caso essencial haver um aumento dos fundos para os países economicamente mais atrasados, e não para os mais desenvolvidos, permitindo assim reduzir o fosso que existe hoje.
Uma sociedade europeia capaz de garantir segurança e defesa a todos os seus cidadãos, seja da ameaça do terrorismo, seja do radicalismo islâmico, seja do crime organizado, seja de Estados revisionistas, mas sempre no âmbito mais vasto da chamada “comunidade de segurança pluralista” do Atlântico Norte. Pela sua geografia e o conhecimento que decorre da sua história, Portugal tem um papel particularmente relevante no que diz respeito às ameaças vindas do Norte de África, do Sahel Ocidental e mesmo do Golfo da Guiné.
Este projeto ambicioso faz parte da moção de estratégia global do Partido Social Democrata, aprovada no último congresso. Os pessimistas dirão que é um sonho. Mas a Europa do pós-Guerra fez-se pelo sonho e não pelo pessimismo. E só não sonha quem desistiu de sonhar.
Presidente da Comissão de Relações Internacionais do PSD, coordenador do grupo de Relações Externas do Conselho Estratégico Nacional