As cerejeiras em flor de Londres
O Inverno chega e as cerejeiras, quase mortas, despidas até ao lenho, aguentam-se de pé meses a fio, e durante meses a fio esquecemo-nos das mesmas, agarrados às roupas, ao corpo e aos guarda-chuvas enquanto corremos de um lado para o outro com os olhos no chão.
Escolhi a fotografia de propósito. Podia ter escolhido um mar rosa em flor, alamedas inteiras a rebentar de cor e esplendor, avenidas cobertas de ramos atafulhados, entupidos, de flores umas em cima das outras, tu debaixo de uma chuva de pétalas quando o vento sopra, eu sei lá.
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Escolhi a fotografia de propósito. Podia ter escolhido um mar rosa em flor, alamedas inteiras a rebentar de cor e esplendor, avenidas cobertas de ramos atafulhados, entupidos, de flores umas em cima das outras, tu debaixo de uma chuva de pétalas quando o vento sopra, eu sei lá.
Mas não. Nada disso. Escolhi esta fotografia, esta cerejeira magra, torcida e retorcida pelo vento que ainda agora sopra nesta terra sem dó, esta árvore esbatida contra uma casa parda contra um céu pardo numa qualquer rua inglesa num qualquer dia tipicamente inglês, feio, encoberto e frio de Primavera.
“Lovely”, dirão os ingleses ao sair à rua, e lovely é o termo mesmo quando não há nada de lovely na rua ou razão alguma para sair de casa num dia de chumbo, com um céu de chumbo e uma vida de chumbo, e o céu, nesta terra, caiu mesmo em cima da cabeça. “Lovely”, insistem os ingleses.
Não obstante, não podemos deixar de sair, não podemos deixar de nos deslumbrar diante destes ramos castigados e ao mesmo tempo belos, uma obra de arte, um quadro impressionista na figura deste tronco tão seco e áspero como cheio de vida, ainda de pé em jeito de desafio, coroado de flores para deleite de quem passa.
Se esta cerejeira é feia? É. O Inverno chega e as cerejeiras, quase mortas, despidas até ao lenho, aguentam-se de pé meses a fio, e durante meses a fio esquecemo-nos das mesmas, agarrados às roupas, ao corpo e aos guarda-chuvas enquanto corremos de um lado para o outro com os olhos no chão.
Meses. O tempo suficiente para nos esquecermos de que estamos vivos. E não estamos. Pelo menos até Março, quando a rotação infinda da Terra traz os primeiros raios de sol e, por artes de magia, o mundo se enche de cor. De repente, lembramo-nos. E, de repente, olhamos em frente, olhamos para cima, e abrimos a boca de espanto. A profusão de flores, apesar de efémera, anuncia que mesmo a noite mais longa chega sempre ao fim. E não nos cansamos de guardar nos telemóveis e máquinas fotográficas as boas vindas a mais uma Primavera.
Mas não só: além das cerejeiras temos as magnólias e as suas flores em cálice, brancas, rosas, ainda mais belas, ainda mais efémeras.
Tendo passado um quarto da minha vida em Lisboa, já há muito desconhecia o significado das estações numa região de folha perene. O sol ao longo do ano era um garante, abundantemente desperdiçado por quem sabe que depois de um dia de sol vem sempre outro.
Cá fora, no entanto, não há sol. Quer dizer, há, mas não é todos os dias, nem todos os meses, e a sua luz, ténue, não chega para abraçar a pele saudosa de outras paragens, outras praias e outros mares.
Cá fora, sem sol, e em dias de Verão tão frios como dias de Inverno, as cerejeiras são os nossos guias, o farol na noite mais escura, a luz ao fundo do túnel, a tábua de salvação de quem chega ao fim de mais um Inverno.
E por isso esperamos, e ansiamos, por uma flor, mesmo nos ramos mais raquíticos, à porta de casa, em cada esquina, cada dia à espera, cada dia à espreita do fim, não do frio, mas da noite, à espera de um pouco mais de luz na primeira cerejeira em flor de braços abertos para a Primavera.