Educação e nepotismo
A nova via de acesso ao superior para os diplomados pela via profissional pode abrir a porta a um facilitismo destruidor.
O sistema de certificação académica existe para dar pública prova da competência que determinada pessoa possui para o exercício de certas funções. Há séculos que cabe ao Estado dar esta certificação, direta ou indiretamente, e tem de o fazer de modo a garantir que é merecida a confiança que o público deposita nos profissionais que receberam tal certificação.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
O sistema de certificação académica existe para dar pública prova da competência que determinada pessoa possui para o exercício de certas funções. Há séculos que cabe ao Estado dar esta certificação, direta ou indiretamente, e tem de o fazer de modo a garantir que é merecida a confiança que o público deposita nos profissionais que receberam tal certificação.
É esta certificação exigente e credível que sempre permitiu a ascensão social daqueles que se distinguiam no seu percurso educativo até à obtenção final de uma licenciatura para o exercício profissional. Hoje, cresce o receio larvar de que os títulos académicos já não tenham o valor “de antigamente”. A massificação do acesso à educação e ao ensino superior tem naturalmente efeitos, mas ninguém poderá duvidar que os padrões de exigência se mantêm e que o médico de hoje se distingue ainda mais do que outrora pelo seu conhecimento técnico. Para os leigos, resta a experiência sincrética, porque de médico e louco todos temos um pouco.
A manutenção de padrões elevados de exigência na certificação é necessária para que o público não desvalorize o título e venha a optar por um leigo bem-falante. Um grande estudo estatístico recente concluiu que, em Inglaterra, certos cursos e certas universidades tinham um impacto salarial negativo aos 29 anos. O escândalo ainda não abateu, mas temos de compreender o que se está a passar para evitar que os diplomas se desvalorizem ao ponto de os jovens abandonarem ou deixarem de sentir que o esforço vale a pena.
Este argumento é muito simples e transparente, mas não parece bem assimilado quando vemos a ligeireza com que se tomam algumas decisões com forte impacto no nosso sistema educativo. Depois da extinção de exames ao longo do ensino básico e secundário, passamos à bem orquestrada campanha contra os exames finais do secundário. E foi agora anunciado (PÚBLICO, 25 de março) que teremos um novo canal de acesso ao superior para que os diplomados pela via profissional possam fugir àqueles exames. Argumenta-se que seria injusto propor-lhes exames sobre matérias que eles não estudaram, ainda que possam ser muito importantes para o percurso que se propõem seguir no ensino superior. A solução é simples. No lugar do exame geral, teremos um exame em privado para que não se torne muito visível a admissão em cursos universitários e politécnicos de candidatos que estão muito longe de estar preparados para isso. Dir-se-á que vão chumbar depois como acontece em França, por exemplo. Mas não é esse o caso em Portugal, onde a experiência está feita. Havendo já alguns grupos de candidatos que podem entrar pela porta lateral, não consta que as instituições onde eles dominam tenham maior insucesso ou abandono (nem poderia ser de outra forma, porque foram as próprias instituições a decidirem a sua admissão). Só quando chegam ao mercado de trabalho é que temos empregadores a queixarem-se ou a tomarem a decisão racional de optarem por outros. E os preteridos vão engrossar a fila dos que são prejudicados pela proposta encantatória de uma falaciosa certificação.
Temos instituições de ensino superior em dificuldade para manterem cursos que deixaram de ser atrativos ou para simplesmente sobreviverem face à queda demográfica, mas não pode ser este o caminho para salvar as aparências no curto prazo e para desacreditar todo o sistema no médio prazo. Temos certamente de oferecer pontes de ajuste de opções educativas que podem ser repensadas, mas temos de fazer isto com seriedade e sem abrir a porta a um facilitismo destruidor.
E que tem isto a ver com o nepotismo? Uma organização bem gerida e focada nos resultados seleciona o seu pessoal com base nas competências demonstradas e tendo em vista as tarefas propostas. Isso exige um bom sistema de certificação de competências. Falhando este, voltamos à velha prática de escolher os colaboradores entre os mais próximos de modo a satisfazer expectativas que são legítimas se não for público e notório que outros fariam melhor. Baixando a exigência e a seriedade do sistema de certificação do sistema educativo, estamos a destruir a sua função de ascensor social e a alimentar o nepotismo. Os mais bem relacionados ganharão. Os mais frágeis e socialmente marginais estarão condenados à marginalidade definitiva. É esta a opção que vemos crescer nos dias de hoje. Será este o resultado desejado?
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico