António Vaz Carneiro: não faz sentido fazer check-ups anuais

António Vaz Carneiro, director do Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência, diz que cerca de “60% dos cancros são aleatórios” e que as pessoas gostam de acreditar em “explicações mágicas”. O médico escreveu um livro em que se propôs desmontar meia centena de mitos e crenças na saúde que vai ser apresentado na quinta-feira em Lisboa.

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António Vaz Carneiro Miguel Manso

“É muito mais interessante acreditar que um copo de água de homeopatia nos vai curar um cancro ou que a trovoada é a cólera de Deus do que acreditar que a homeopatia não tem nada e que a trovoada é um fenómeno eléctrico”, afirma António Vaz Carneiro. Defensor de uma medicina baseada em provas científicas, o médico e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa quer melhorar a literacia em saúde com informação de base científica de alta qualidade.

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“É muito mais interessante acreditar que um copo de água de homeopatia nos vai curar um cancro ou que a trovoada é a cólera de Deus do que acreditar que a homeopatia não tem nada e que a trovoada é um fenómeno eléctrico”, afirma António Vaz Carneiro. Defensor de uma medicina baseada em provas científicas, o médico e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa quer melhorar a literacia em saúde com informação de base científica de alta qualidade.

Diz que não se preocupa com um risco que pelo menos não duplique a sua probabilidade de doença. Mas como é que um leigo pode contabilizar isto? As pessoas são massacradas com resultados de estudos e andam assustadas.
Estamos a criar um grupo de pessoas preocupadas que estão bem, que são saudáveis, que não têm nada, e que, no entanto, estão sempre à espera de ter uma doença. O risco é uma noção estatística, é a probabilidade de alguma coisa acontecer. Se comprar um bilhete do Euromilhões arrisco-me a ganhar o prémio. Mas em saúde o risco é sempre negativo, é sempre uma coisa que lesa, que provoca dano. Agora, tenho que medir o risco, depois, tenho que comunicar o risco, e, em terceiro lugar, tenho que o gerir.

Um dos mitos que desmonta no livro é o do que o leite de vaca faz mal à saúde.
A não ser que tenham intolerância à lactose, não há nenhuma razão para as pessoas não beberem leite de vaca, que é um alimento equilibrado. A alimentação é uma área muito importante para as pessoas - afinal, comemos quatro vezes por dia. Mas atribui-se à dieta um impacto que ela provavelmente não tem. Há uma quantidade de mitos espantosos sobre os benefícios ou malefícios da dieta.

Defende que as pessoas gostam de acreditar em coisas mágicas. O que é que quer dizer com isso?
É muito mais interessante acreditar que um copo de água de homeopatia nos vai curar um cancro ou que a trovoada é a cólera de Deus do que acreditar que a homeopatia não tem nada e que a trovoada é um fenómeno eléctrico. As pessoas adoram coisas mágicas, adoram acreditar que há uma razão escondida, não captada pela ciência, que explica todos os fenómenos. Querem ter uma explicação para tudo. Dou-lhe um exemplo: diz-se que as correntes de ar constipam, mas o que provoca constipações são os vírus.

A minha proposta é: vamos procurar uma explicação científica [para os fenómenos], não necessitamos de inventar. No Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência [que Vaz Carneiro dirige na Faculdade de Medicina de Lisboa], tentamos sempre responder às perguntas das pessoas que nos contactam. 

Outro mito que desmonta é o de que as pessoas devem fazer check-ups anuais. Mas então não faz sentido tentar detectar as doenças numa fase precoce?
Está documentado que, em pessoas com doenças crónicas estáveis, ou perfeitamente saudáveis e acima dos 65 anos, quem faz check-ups [exames de rotina] regulares tem tendência a um aumento muito ligeiro de mortalidade, comparando com pessoas que não os fazem. Porquê? Porque há resultados errados, os testes não são 100% fiáveis, e temos o problema dos falsos positivos - um teste anormal numa pessoa que não tem doença. O que acontece então? O médico vai fazer toda uma série de intervenções desnecessárias.

Com o Choosing Wisely [escolhas criteriosas em saúde, um projecto que lançou recentemente em conjunto com a Ordem dos Médicos, que disponibiliza no seu site uma série de recomendações] queremos evitar isto, queremos evitar ser demasiado agressivos com doentes que são saudáveis e estão bem, evitar diagnósticos que são espúrios porque vão induzir tratamentos que não são necessários. 

O professor faz check-ups regulares?
Não, claro que não. E nunca pedi um PSA (exame para detectar cancro na próstata) na minha vida. O intuitivo é: faz-se o teste e depois logo se vê se é normal. Mas, se a pessoa não tem uma doença, eu tenho muita dificuldade em interpretar análises, porque, se houver alguma coisa errada, como não fiz diagnóstico provisório antes, não sei interpretar estes dados.

Eu trato doentes, não trato números. Os números devem ser integrados na informação global de cada doente. Portanto, permita-me a expressão, quando peço exames à balda não sei interpretá-los. No caso do cancro é mais complicado. Temos hoje campanhas de rastreio que detectam mais cancros muito pequeninos, pequenos nódulos, em estádios iniciais, o que poderia ser uma coisa boa, mas isso é negado porque nos estudos em grandes populações o que se verifica é que não diminui a mortalidade. Estes cancros não matam os doentes. Provavelmente, estou a tratar cancros que não teriam evolução clínica.

Isto aplica-se ao cancro de mama?
O cancro da mama e o da próstata são os dois cancros mais bem estudados. A maior parte das lesões iniciais muito pequeninas não vai evoluir. Até há estudos que demonstram que com o tempo tendem a desaparecer numa percentagem importante.

Então, o que fazemos a estes doentes? Não os tratamos?
Não, estes doentes passam a ser seguidos cuidadosamente. Até dá muito mais trabalho fazer isto. 

Diz que uma parte substancial dos cancros são aleatórios.
Sim, 60% dos cancros são perfeitamente aleatórios. Nós dois temos os mesmos factores de risco, mas você vai ter cancro e eu não. Agora, há cancros hereditários e cancros ligados a factores de risco e 40% ainda é uma percentagem importante. Mas não sabemos quem vai ter cancro. A idade é o principal factor de risco, se vivermos todos até aos 120 anos vamos todos ter cancros.

Voltando aos mitos e crenças que desmonta no livro, como é que estes perduram?
Hoje em dia há um movimento anticientífico. Um exemplo desse movimento é o presidente dos EUA, Donald Trump, que põe em causa as provas das alterações climáticas. Ele diz que aquilo que lhe apresentam vale tanto quanto o seu feeling. Portanto, vai fazer uma política baseada no seu feeling... Pôr isto em causa a este nível é absolutamente esmagador. E muitas pessoas acreditam agora que lendo umas coisas na Internet ficam peritos na área.

Muitas vezes os meus doentes trazem-me 15 páginas de informação que retiraram da da Internet. Como é que vou contrariar esta informação? Aí é que está o desafio. Vou-lhe dizer-lhes que há uma outra forma, uma metodologia científica para explicar isto.

Costuma recordar o caso de Steve Jobs como o de alguém inteligente que preferiu as terapias alternativas.
Steve Jobs foi um dos grandes homens do século XX. Ele tinha um cancro neuroendócrino, era um caso raro de cancro de pâncreas que era facilmente operável, mas preferiu fazer ioga, ervas e homeopatia e, quando quis ser operado, já era tarde de mais. Isto não tem a ver com inteligência de per si, é o fascínio que temos pelas explicações mágicas.

No livro admite também que está muito preocupado com o burnout dos médicos. A situação é assim tão grave?
Isto está muito bem estudado. Eu estou muito preocupado porque é elevada a percentagem das respostas em vários inquéritos que revelam burnout. É um desinteresse, uma revolta pelas condições em que estão a trabalhar, indiferença, cinismo, desilusão com a profissão. Preocupa-me que metade estejam disfuncionais.

É muito curioso que as mais altas taxas de burnout se observem nos médicos dos 35 aos 45 anos, que ainda não se habituaram a defender-se, a isolarem-se periodicamente e a protegerem-se da agressão que é estar 24 horas de banco (urgência). Há menos médicos, a produtividade aumentou, estamos a trabalhar muito mais horas e muito mais intensamente.