Joe Berardo quis vender 16 obras que acordara expor no CCB pelo menos até 2022

No Verão do ano passado, a Direcção-Geral do Património rejeitou um pedido da associação do empresário madeirense para que saísse do país “para eventual venda” um conjunto de “quadros” que estão no Museu Colecção Berardo desde 2006. As dívidas de Joe Berardo continuam a ser uma dor de cabeça para a banca.

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O então ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, com Joe Berado na assinatura da adenda ao acordo de empréstimo, em Novembro de 2016 PÚBLICO

As relações entre a administração do Centro Cultural de Belém (CCB) e o empresário madeirense Joe Berardo, a quem pertence a colecção de arte moderna e contemporânea ali exposta desde 2007, têm conhecido ao longo dos anos vários momentos de tensão, por vezes extensíveis à Direcção-Geral do Património Cultural e até ao próprio Ministério da Cultura.

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As relações entre a administração do Centro Cultural de Belém (CCB) e o empresário madeirense Joe Berardo, a quem pertence a colecção de arte moderna e contemporânea ali exposta desde 2007, têm conhecido ao longo dos anos vários momentos de tensão, por vezes extensíveis à Direcção-Geral do Património Cultural e até ao próprio Ministério da Cultura.

Foi assim em 2014, por exemplo, quando o então presidente do CCB, António Lamas, admitiu publicamente que, podendo decidir, nunca ali teria instalado o museu. Foi assim em 2016, ano da assinatura da adenda ao acordo de comodato entre o Estado e o empresário para que o acervo permanecesse em Belém pelo menos até 2022, quando Berardo cedeu à pressão do MC para que o museu, até então gratuito, passasse a ter entradas pagas. Voltou a ser assim em Agosto de 2018 quando a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), depois de ter indeferido um pedido de expedição para o Reino Unido de “16 quadros” feito em nome da Associação Colecção Berardo, enumerava os fundamentos da sua decisão.

Este parecer jurídico em que se explica por que motivo estava “vedada a saída do território nacional” das 16 obras foi dado a conhecer esta segunda-feira à tarde pelo semanário Expresso. No documento, assinado pela directora-geral, Paula Araújo da Silva, é dito que as obras não podem sair do país “para eventual venda” porque “são parte integrante do conjunto designado por Colecção Berardo que aquela associação se obrigou a manter em comodato [sob empréstimo]” no Museu Colecção Berardo “pelo período de seis anos, renováveis automaticamente, a contar de 1 de Janeiro de 2017”.

De acordo com a adenda assinada em 2016, que prolongou um acordo celebrado em 2006 no Governo do socialista José Sócrates, a associação está impedida de praticar quaisquer actos que “restrinjam ou impeçam o uso da coisa dada em comodato”. O mesmo documento “confere ainda ao Estado o direito de opção de compra da Colecção Berardo no seu todo” durante a vigência do acordo, o que não poderia acontecer se parte tivesse já sido vendida.

“A Associação Colecção Berardo, enquanto vigorar o comodato, não pode dispor dos bens culturais objecto do pedido de expedição”, concluía, em Agosto do ano passado, o parecer da DGPC.

A colecção que está ao abrigo deste empréstimo é composta por 862 obras de pintura, escultura, desenho, instalação e fotografia que permitem acompanhar os principais movimentos artísticos do século XX, pode ler-se na apresentação que o museu tem no seu site, e foi avaliada em 2006 pela leiloeira Christie’s em 316 milhões de euros.

O grosso deste acervo – 594 peças – foi reunido até 2000 sob a orientação de Francisco Capelo, também ele coleccionador. Capelo é, aliás, um dos autores (com as historiadoras Raquel Henriques da Silva e Adelaide Duarte) de um artigo que saiu na revista Sábado em Novembro de 2016 em que se diz, entre outras coisas, que as incorporações feitas depois de 2000 são muito desiguais em termos de qualidade e que a grande fatia de valor da colecção (48%) está concentrada em 14 obras de outros tantos artistas. Estarão estas 14 obras no lote de “16 quadros” que a Associação Colecção Berardo gostaria de ter feito sair do país? Para já, o PÚBLICO não consegue responder. Do parecer jurídico da DGPC a que teve acesso não constam nem os nomes dos artistas, nem os títulos das obras objecto do pedido de expedição para “eventual venda” no Reino Unido.

Nestes 13 anos foram já muitos – políticos, presidentes do CCB, artistas, críticos e outros agentes culturais – a pedir que se divulgasse um inventário da colecção abrangida pelo acordo de comodato e a insistir na necessidade da sua renegociação, tendo em conta os gastos da Fundação CCB com o funcionamento do Museu Colecção Berardo e os cortes a que foi sujeita em sede de Orçamento do Estado.

Um grande devedor 

As dívidas de Joe Berardo continuam a ser uma dor de cabeça para a banca. Esta segunda-feira, o Correio da Manhã noticiou que os bancos avançaram para os tribunais, em conjunto, para tentar recuperar parte dos créditos milionários que o empresário acumulou há mais de dez anos (já perto de um total de mil milhões de euros). Este passo é o desenvolvimento mais recente de um processo desencadeado em meados de 2017, quando a CGD, o BCP e o Novo Banco deram instruções para executar a penhora sobre 75% da colecção Berardo, depois de este ter entrado em incumprimento.

No entanto, uma vez que o crédito está minado de obstáculos (nomeadamente por estar garantido por títulos da Associação da Fundação Berardo, cujo valor se desconhece), os bancos nunca puseram de parte uma solução que passasse por negociações. Uma tentativa que parece agora irremediavelmente fracassada. Em causa neste processo estão créditos em torno dos 500 milhões de euros e que serviram, nomeadamente, para o investidor comprar em 2007 uma participação de cerca de 7% do BCP, que vivia na altura uma guerra de poder interna. Mas estes são apenas uma parte da exposição total do empresário à banca, distribuída entre CGD (400 milhões de euros), BCP, (400 milhões), e BES/Novo Banco (200 milhões), aos quais se junta ainda o Santander Totta, que o financiou em menos de 100 milhões

A auditoria à gestão da Caixa destapou, recentemente, um dos problemas com que se têm vindo a confrontar os actuais gestores dos bancos na sua relação com um dos seus maiores credores: o aval pessoal que Berardo deu para garantir os avultados financiamentos no banco público não foi encontrado pela consultora que realizou a auditoria. Em causa estão perto de 40 milhões. Este aval foi uma das garantias, juntamente com os títulos da Fundação, com as acções do BCP e com outros activos, que serviram até 2008 para financiar a actividade de Joe Berardo. Ainda na semana passada, Eduardo Paz Ferreira, ex-presidente do Conselho Fiscal da Caixa Geral de Depósitos entre 2008 e 2016, revelou aos deputados, na comissão parlamentar de inquérito aos créditos ruinosos no banco público, que havia “tratamento especial” a alguns dos grandes devedores do banco público, sobretudo ao comendador Joe Berardo. O empresário é um dos clientes da banca que os deputados querem ouvir no âmbito desta comissão. com Cristina Ferreira