Deixem-me a olhar para a paisagem
Muitas vezes, andar de autocarro pode ser muito frustrante. Mas nem todas as viagens têm de ser um pesadelo: se aquele lugar estiver livre pode muito bem servir de escape à confusão reinante, uma suspensão do tempo.
Os melhores lugares dos autocarros urbanos são aqueles logo ao início, geralmente solitários, do lado direito de quem entra. Melhor ainda se forem de costas para o motorista, sobretudo nas cidades que não conhecemos: a estrada fica invisível, o percurso é um mistério, assistimos do nosso lugar a um espectáculo de permanente surpresa.
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Os melhores lugares dos autocarros urbanos são aqueles logo ao início, geralmente solitários, do lado direito de quem entra. Melhor ainda se forem de costas para o motorista, sobretudo nas cidades que não conhecemos: a estrada fica invisível, o percurso é um mistério, assistimos do nosso lugar a um espectáculo de permanente surpresa.
Tirando aqueles autocarros velhíssimos, como ainda há alguns na Carris, em que é preciso escalar três degraus enormes para entrar, na maioria dos veículos que por aí circulam estes lugares da entrada estão mais ou menos ao nível da rua e isso permite ver a cidade de uma perspectiva incomum. Raramente olhamos para cima quando andamos a pé, mas no autocarro temos a oportunidade de o fazer — e ir sentados.
Os edifícios revelam-se inteiros, com pormenores que geralmente escapam à atenção pedestre. Consegue-se perceber as várias vidas de um prédio consoante os acrescentos que lhe fizeram. E nesses acrescentos pode-se entrever se o tempo era de abastança ou de remedeios, para os senhores da casa ou para rendimento, construção apurada ou à pressa. Certos edifícios há que não conheceram outra forma do que aquela que têm, são obra acabada até alguém se lembrar de lhe subir a cércea, acrescentar mansardas e águas furtadas, às vezes de gosto duvidoso.
Daquele lugar do autocarro vemos a silhueta das ruas — uns prédios mais altos que outros, alguns absurdamente altos, outros comicamente baixos —, adivinhamos quais se vão manter por mais uns anos e quais serão abatidos em breve, dando lugar a coisa nova que avaliaremos em posterior viagem de autocarro. Percebemos também a sua relação com o céu, as árvores, os candeeiros. Se estão estrangulados em fios de telecomunicações ou se estes foram civilmente escondidos. Se as marquises são coisa esporádica ou abundante. Se há toldos, persianas, portadas, estores ou cortinas. Se as varandas têm vegetação, cadeiras de baloiço, mesas ou espreguiçadeiras. Tanta vida se pode adivinhar através de coisas aparentemente insignificantes.
As árvores são outra coisa para que se olha com mais atenção. Muitos lisboetas têm a mania de se derreter só com os jacarandás em flor, mas o que não falta em Lisboa e noutras cidades são árvores bonitas, de todas as formas e cores. Se calha o autocarro parar num semáforo ou para deixar entrar alguém, apercebemo-nos de quão grande é a copa daquela árvore e como estão verdes as suas folhas. Se a flor é branca, vermelho-vivo, lilás, amarela. Se a copa está podada como fazem em Paris, em cubo, ou se cresce em liberdade. Aprende-se muito sobre uma cidade e sobre quem lá vive olhando para as suas árvores.
Estes lugares nos autocarros são um balcão privilegiado para o espectáculo do mundo, que à nossa volta se desenrola indiferente à nossa presença. É uma das melhores formas de conhecer uma cidade nova. Vai-se a olhar para a paisagem e, ao mesmo tempo, a ver quem entra, a apanhar pedaços de conversas, a sentir a pulsação do lugar. No metro isso também se consegue, se calhar até com mais eficácia se o comboio for cheio, mas o que se vê da janela é sempre o mesmo e a viagem é tão mais rápida que metade do prazer desaparece.
Mesmo nas cidades que já conhecemos o exercício é proveitoso. Tome-se uma qualquer carreira que não é habitual fazermos e sentemo-nos num desses lugares: há sempre revelações, sempre uma ou outra surpresa. Em Lisboa, como talvez no resto do mundo, os turistas parecem conhecer o segredo. Nas carreiras que não vão entupidas de gente até à porta frequentemente se encontram estrangeiros nesses lugares, apontando para todo o lado enquanto vão olhando para um mapa aberto sobre os joelhos ou, mais comum, um telemóvel. Na Praça do Comércio: “Wow, so big!”; no Mercado da Ribeira: “Oye, que guay!”; debaixo da Ponte 25 de Abril: “Uh la la.” O entusiasmo do primeiro olhar é irrepetível e insubstituível.
Muitas vezes, andar de autocarro pode ser muito frustrante. Os horários não são cumpridos, os carros vêm a abarrotar, os passageiros lá dentro já vêm a praguejar, o ar é irrespirável, os lugares para pessoas com deficiência estão indevidamente ocupados... Mas nem todas as viagens têm de ser um pesadelo: se aquele lugar estiver livre, pode muito bem servir de escape à confusão reinante, uma suspensão do tempo, uma maneira de dizer “deixem-me estar quieto só a olhar para a paisagem”.