Frida Kahlo regressa a Nova Iorque com todo o seu esplendor e dor
Frida Kahlo: Appearances Can Be Deceiving apresenta mais de 300 desenhos, quadros e objectos de valor sentimental que delineiam em pormenor a vida de uma das artistas mais populares do século XX
Depois de terem estado fechados num armário durante quase 50 anos, muitos dos objectos pessoais de Frida Kahlo estão agora no Brooklyn Museum, em Nova Iorque, após terem passado pela Cidade do México e por Londres, num momento em que em vários pontos da cidade americana se sente a necessidade de homenagear a cultura mexicana.
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Depois de terem estado fechados num armário durante quase 50 anos, muitos dos objectos pessoais de Frida Kahlo estão agora no Brooklyn Museum, em Nova Iorque, após terem passado pela Cidade do México e por Londres, num momento em que em vários pontos da cidade americana se sente a necessidade de homenagear a cultura mexicana.
Esta é não só a primeira vez que muitos destes objectos são exibidos nos Estados Unidos da América, mas também a mais extensa retrospectiva de Kahlo no país ao longo da última década. Quando Frida Kahlo morreu em 1954, muitas das suas roupas e objectos pessoais foram guardados nesse cofre, que só poderia vir a ser aberto 15 anos depois de o seu marido Diego Rivera morrer, o que acabou por acontecer em 1957. Mas foi só em 2004 que os historiadores de arte da Casa Azul, residência dos artistas na Cidade do México, onde Frida nasceu, viveu e morreu — e que entretanto se tornou museu —, começaram a olhar para tudo o que tinha sido ali guardado e fizeram um inventário. A exposição explora, através desses objectos, o contexto em que Frida Kahlo cresceu, propondo quase um auto-retrato da artista. “O que vemos é uma imagem que Frida parece ter construído de forma meticulosa, moldando a sua identidade pessoal e pública, reflectindo não só a sua herança cultural e crenças políticas, mas também uma imagem que incorpora as suas limitações físicas”, explica uma das curadoras do Brooklyn Museum, Lisa Small. Frida Kahlo teve pólio quando era criança e aos 18 anos sofreu um acidente num autocarro que lhe deixou lesões para o resto da vida. Esse evento acabou por mudar a forma como se relacionaria com o mundo e marcou muita da sua obra. Exemplos de referência directa ao acidente são The Accident (1926), onde representa a colisão, e The Bus (1929).
Frida Kahlo: Appearances Can Be Deceiving é uma versão mais abrangente de Frida Kahlo: Making Herself Up, a versão do Victoria & Albert Museum (V&A) em Londres, que por sua vez já era uma versão mais extensa da primeira exposição dos objectos na própria Casa Azul em 2012, assinada pela curadora Circe Henestrosa. Lisa Small e Catherine Morris, que pensaram a exposição para o espaço em Brooklyn, incluíram ainda as cerâmicas meso-americanas que pertencem à colecção do próprio museu e 40 fotos de arquivo, lado a lado com os importantes auto-retratos que Frida pintou entre 1926 e 1954. O pai de Kahlo, Guillermo Kahlo, era fotógrafo, o que a aproximou de inúmeros fotógrafos de renome, incluindo Nickolas Muray, Imogen Cunningham, Tina Modotti e Julien Levy, tornando-a uma das artistas mais fotografadas do século XX. Mas o grande foco da exposição continuam a ser as suas roupas, jóias, corpetes e maquilhagem, além das cartas e desenhos que nos mostram a sua fragilidade e a sua força. Segundo Catherine Morris “esta é uma oportunidade de olhar Frida, descobrindo novas nuances”. Quando abriu em Londres, em Junho do ano passado, onde ficou até ter viajado para Nova Iorque, a exposição levou jornais e revistas de moda a falar em “Fridamania”, mas para Lisa Small é muito mais do que isso, “é uma oportunidade de olhar com mais profundidade para uma figura que já é conhecida do público”.
O formato biográfico parece estar a funcionar para o Brooklyn Museum, que tinha já trazido emprestada do V&A, em 2018, David Bowie Is. O museu de Londres, que dedicou também uma mostra aos Pink Floyd, é conhecido pelas suas exposições sobre celebridades. Contudo, apesar de ser uma exposição biográfica, Frida Kahlo: Appearances Can Be Deceiving não foi construída de forma cronológica. Organiza-se em torno de temas, que incluem: Arte e Revolução, que documenta as ligações de Frida ao comunismo; Incapacidade e Criatividade, que explora a dor física da artista e a forma como tentou ultrapassar as lesões; A Casa Azul, uma sala ampla, de cor azul, cheia de arte folclórica não muito diferente das peças que Kahlo e Rivera tinham na sua casa; e Gringolândia, que explora a sua relação com três cidades diferentes nos Estados Unidos: São Francisco, Detroit e Nova Iorque.
Amor-ódio com Nova Iorque
Uma parte da exposição é dedicada ao tempo crucial de Kahlo em Nova Iorque, e ao seu fascínio particular pelo bairro do Harlem. Quando veio para os Estados Unidos em 1931, ao chegar a Manhattan escreveu: “Tudo aqui é mera aparência, mas no fundo é uma verdadeira merda”. Ao confrontar-se com as desigualdades económicas da cidade, Kahlo reafirmou o seu compromisso político com o comunismo e com o México; mas ao mesmo tempo confessava sentir-se atraída pela cidade, descrevendo-a como mágica. Nesta secção — Gringolândia — reflecte-se sobre o tempo que Kahlo passou com Diego Rivera, que na altura estava em Nova Iorque para pintar os murais do Rockefeller Center — os murais inacabados que viriam a ser destruídos por Nelson Rockefeller, depois de Rivera ter pintado uma imagem de Lenin que não estava no plano inicial e de se ter recusado a removê-la — e depois a passagem por Detroit e São Francisco. É também aqui que se documenta a primeira exposição individual de Frida Kahlo em Nova Iorque, em Novembro de 1938, na Julien Levy Gallery, uma galeria influente, especializada em mostrar artistas surrealistas em ascensão. Nessa exposição viu-se Fruits of the Earth (1938), agora também presente em Frida Kahlo: Appearances Can Be Deceiving.
Quando fala à imprensa, a directora do museu, Anne Pasternarck, fala-nos da importância de “trazer a exposição a uma cidade que Frida conhecia tão bem”. Na noite anterior, Trump tinha discursado no Congresso sobre o estado da nação, no qual insistiu na construção de um muro na fronteira entre o México e os Estados Unidos, para controlar a imigração. Pasternarck continua: “este é o momento para unir as pessoas — o momento é agora — para dignificar o México, a sua história, a sua cultura e as suas tradições.” No início do mês de Março, o jornal New York Times apresentou uma série de curtas documentais de realizadores mexicanos que viajaram do México para o Harlem para uma discussão sobre os filmes; e no New Museum terminou sexta-feira passada uma exposição da artista mexicana Mariana Castillo Deball, em que esta examinava como é que o conhecimento e o património cultural são produzidos.
A exposição sobre Frida fica em Brooklyn até 12 de Maio. E à sua volta há todo um conjunto de eventos que procuram celebrar a cultura do país de Frida e Rivera, que vão desde um programa no The Norm, restaurante do museu, com um menu inspirado na cozinha mexicana — que inclui mezcal, tacos e huarache — e chefes convidados entre os quais Felipe e Carlos Arellano, nascidos em Oaxaca, México, emigrantes de mochila às costas, que passaram pela Califórnia antes de atingir o sucesso em Nova Iorque; e ainda festas com artistas e música latina.
Numa entrevista incluída num filme da altura em que Rivera estava a pintar os murais em Detroit, ouvimo-lo a falar sobre a importância da arte e dos artistas na vida pública, na sociedade e na forma como contribuem com pensamentos que podem ir contra o sistema. Além da sua dimensão política, a exposição mostra-nos também a vida de uma figura que há muito foi adoptada como heroína feminista. Kahlo desafiou ideias tradicionais de género, de sexualidade e de identidade, mas apesar disso vivia muitas vezes à sombra da carreira artística de Rivera. Na altura a resposta de Frida foi altamente controversa, dizendo que Rivera não estaria mal “para um pequeno rapaz”. A maneira condescendente como a imprensa escreveu sobre Frida quando ela passou pelos Estados Unidos está também representada na exposição através de recortes de jornais, que incluem o The Detroit News onde se pode ler: “Wife of the Master Mural Painter Gleefully Dabbles in Works of Art”.
“Frida era altamente política, e o que ela fazia estava sempre em linha com aquilo em que acreditava, fosse o comunismo ou o feminismo. E apesar da nossa intenção inicial não ter sido política, o museu procura pôr o foco em mulheres artistas e o nosso trabalho procura celebrar a inclusividade, portanto estamos muito orgulhosos de poder celebrar essa vertente de Kahlo”, explica a curadora Lisa Small, em entrevista ao PÚBLICO. A exposição apresenta uma série de auto-retratos onde se encontra Self-Portrait With Cropped Air (1940), onde essa exploração do masculino também está presente.
A gama de objectos pessoais apresentada é ampla e altamente íntima: peças de roupa, espartilhos pintados à mão, saias, vestidos e tops Tehuana, além de várias peças de joalharia contemporânea. Vernizes, batons e outros itens de maquilhagem Revlon, anunciada como a marca preferida de Kahlo, são expostos em vitrinas; e juntam-se às saias e vestidos largos, apresentados não só como uma demonstração da sua herança mexicana, mas também como uma forma de poder esconder as lesões na perna, que acabaria por ser amputada.
Também exposta está a prótese de Frida, que desenhou e pintou com motivos e cores típicas da sua palete, assim como os espartilhos de gesso que pintava. Lisa Small acrescenta que “só agora percebe a gravidade do acidente que Frida sofreu quando tinha 18 anos e a forma como isso a influenciou para o resto da vida”. Na exposição encontram-se relatórios médicos e cartas em que a artista explica tudo o que sente sobre a sua condição — física e emocionalmente —, detalhando tratamentos e momentos de desespero e desilusão, como quando abortou involuntariamente, experiência de perda que retrata numa série de desenhos também expostos. Essa dor é partilhada com o mundo. A dor de Frida Kahlo — a sobrevivente, que se junta à feminista, comunista e artista.