Cortem-me a cabeça se não é um Caravaggio!

O especialista de arte antiga Eric Turquin mantém a sua convicção de que a Judite e Holofernes descoberta em 2014 num sótão de Toulouse é mesmo de Caravaggio. O crítico de arte Jonathan Jones diz que a atribuição é um insulto à subtileza do pintor. A tela vai a leilão em Junho e pode chegar aos 150 milhões de euros.

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A polémica em torno da atribuição a Caravaggio de uma tela encontrada em 2014 num sótão de Toulouse, mostrando Judite a decapitar o general assírio Holofernes, voltou a reacender-se com a aproximação do dia 27 de Junho, quando a obra irá ser leiloada na mesma cidade francesa onde foi descoberta. A licitação abrirá nos 30 milhões de euros, mas estima-se que o preço final possa situar-se perto dos 150 milhões, valores que dificilmente alguém desembolsará sem estar muito certo de que a pintura é mesmo do grande mestre barroco italiano Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610).  

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A polémica em torno da atribuição a Caravaggio de uma tela encontrada em 2014 num sótão de Toulouse, mostrando Judite a decapitar o general assírio Holofernes, voltou a reacender-se com a aproximação do dia 27 de Junho, quando a obra irá ser leiloada na mesma cidade francesa onde foi descoberta. A licitação abrirá nos 30 milhões de euros, mas estima-se que o preço final possa situar-se perto dos 150 milhões, valores que dificilmente alguém desembolsará sem estar muito certo de que a pintura é mesmo do grande mestre barroco italiano Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610).  

Eric Turquin, respeitado especialista francês em pintura antiga, que trabalhou alguns anos na Sotheby’s, em Londres, antes de se estabelecer como consultor independente em Paris, sempre defendeu que a tela de Toulouse é a segunda versão, há muito desaparecida, que Caravaggio teria pintado da cena bíblica em que uma viúva judia chamada Judite, protagonista do livro deuterocanónico homónimo, decapita o general assírio Holofernes.

Turquin defende que há provas documentais de que Caravaggio, que já tinha pintado uma Judite e Holofernes em 1598 ou 1599 – a que se encontra em Roma, no Palácio Barberini, um dos núcleos da Galeria Nacional de Arte Antiga –, voltou ao tema em 1607, quando se encontrava em Nápoles, onde se refugiara no ano anterior, sob a protecção da poderosa família Colonna, após ter morto um homem em Roma. A ser assim, esta segunda Judite e Holofernes seria do mesmo ano de uma das mais admiradas obras-primas de Caravaggio, as Sete Obras de Misericórdia, conservada na igreja e museu Pio Monte della Misericordia, em Nápoles.

Nem todos, contudo, aceitam como facto incontestável que Caravaggio tenha efectivamente pintado uma segunda versão da tela. O historiador e crítico de arte Jonathan Jones, colaborador regular do diário inglês The Guardian e um dos mais veementes adversários da tese de Turquin, nota que o que se sabe ao certo é que um “discípulo menor” do pintor, o artista flamengo Louis Finson, terá tentado vender em Nápoles, em 1607, uma Judite e Holofernes de Caravaggio, e que os especialistas especulam que a tela com o mesmo tema actualmente exposta no palácio napolitano Zevallos possa ser uma cópia executada pelo mesmo Finson a partir de uma pintura desaparecida do seu mestre. Mas o próprio Jones reconhece que o quadro encontrado em Toulouse revela uma competência que não estaria ao alcance do flamengo.

A pintura, muito suja e com pequenos danos provocados por uma fuga de água, foi encontrada em 2014 num sótão de Toulouse, onde se encontraria talvez há mais de cem anos, por um leiloeiro local, Marc Labarbe. Quando o seu cliente lhe mostrou o quadro, Labarbe diz ter ficado muito impressionado pela força da composição e afirma ter suspeitado desde logo de que poderia ser um Caravaggio. Chamou então Turquin, que dedicou dois anos a uma minuciosa investigação antes de concluir que a tela era mesmo do pioneiro mestre italiano do chiaroscuro.

A descoberta só chega aos meios de comunicação na Primavera de 2016 e é então que estala a polémica. Uma das primeiras pessoas a quem Turquin mostra a pintura é a italiana Mina Gregori, professora emérita da Universidade de Florença, que não se deixa convencer pelos seus argumentos e que virá a declarar publicamente a sua convicção de que também esta tela será obra de Louis Finson, juízo depois partilhado por outro professor da mesma universidade, Gianni Papi, reconhecido especialista em Caravaggio.

Uma vez limpa e restaurada, a pintura foi mostrada no Louvre, que não tomou posição sobre a eventual autoria de Caravaggio. Mas o Ministério da Cultura impediu então a obra de ser exportada para fora do país por um período de três anos, prazo que expirou em Dezembro passado. E não tendo aparecido entretanto nenhuma instituição pública disposta a adquirir a obra, esta pode agora ser livremente vendida.

Na sua edição online da passada quarta-feira, o jornal Art Newspaper retoma a discussão, ouvindo os argumentos de Turquin, cujas conclusões poderão ter saído reforçadas com os resultados de uma análise científica que demonstrou que o artista fez alterações relevantes em vários pormenores, tornando menos plausível que se trate de uma cópia. “São tantas as razões que me convencem da sua autenticidade”, diz Turquin, “que estenderia o pescoço para me cortarem a cabeça, como a Holofernes!”

Mas o Art Newspaper publica na mesma edição um artigo de Jonathan Jones, crítico de arte do Guardian e autor de vários livros sobre a arte do Renascimento, que não se mostra menos veemente a recusar a autoria de Caravaggio. Embora reconhecendo que a tela tem todos os sinais exteriores do seu estilo, detecta uma “falta de sensibilidade no uso da luz” que “rouba à pintura a sua força psicológica”. E exemplifica: “Judite parece distraída (…), empunha a faca descuidadamente, e é também frouxo o gesto com que agarra os cabelos de Holofernes”.

E conclui: “Não faço ideia quando foi pintada, nem por quem, nem onde, mas querer atribuir esta desleixada Judite e Holofernes a Caravaggio é um insulto à sua subtileza”.

O que não impede Marc Labarbe de estar confiante de que a pintura, agora liberta de quaisquer entraves à exportação, poderá vir a ser arrematada por um valor próximo dos 150 milhões de euros no leilão que irá promover em Toulouse no dia 27 de Junho, montante até hoje só muito raramente alcançado por obras de pintura antiga. Até lá, tem procurado mostrá-la o mais possível. O quadro esteve já exposto em Londres, na galeria Colnaghi, e passará ainda por Nova Iorque antes do leilão.