Aves e indicadores: do Renascimento à actualidade

Na Europa as aves associadas aos meios agrícolas mostram um declínio de 57% desde 1980. A partir de 8 de Abril, a Universidade de Évora vai acolher uma das mais prestigiadas reuniões científicas sobre aves e indicadores ambientais.

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Pintassilgo: uma das aves mais polícromas da avifauna europeia. Uma presença ainda comum no espaço rural do continente Diogo Oliveira

No primeiro piso de Gli Uffizi em Florença, a magnífica, há uma sala dedicada a Raffaello Sanzio, mestre de Urbino e expoente do Renascimento. Aí se encontra uma das obras mais expressivas do seu período florentino: Madonna del cardellino. Raffaello representou Maria ainda jovem, João Baptista e Jesus como infantes, e dispôs as 3 figuras num desenho geométrico. As mãos do profeta seguram uma ave que Jesus acaricia com a mão direita. Os meninos cruzam os olhares e Maria fita João, com a serena profundidade de quem indaga o futuro. O animal no centro geométrico do quadro é um pintassilgo e representa a Paixão de Cristo, numa associação à lenda que explica as penas vermelhas que lhe rodeiam o bico: na via crucis de Jesus, um pintassilgo voou para a Sua cabeça e enquanto retirava um espinho da coroa, um jorro do Seu sangue manchou-o. Para sempre.

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No primeiro piso de Gli Uffizi em Florença, a magnífica, há uma sala dedicada a Raffaello Sanzio, mestre de Urbino e expoente do Renascimento. Aí se encontra uma das obras mais expressivas do seu período florentino: Madonna del cardellino. Raffaello representou Maria ainda jovem, João Baptista e Jesus como infantes, e dispôs as 3 figuras num desenho geométrico. As mãos do profeta seguram uma ave que Jesus acaricia com a mão direita. Os meninos cruzam os olhares e Maria fita João, com a serena profundidade de quem indaga o futuro. O animal no centro geométrico do quadro é um pintassilgo e representa a Paixão de Cristo, numa associação à lenda que explica as penas vermelhas que lhe rodeiam o bico: na via crucis de Jesus, um pintassilgo voou para a Sua cabeça e enquanto retirava um espinho da coroa, um jorro do Seu sangue manchou-o. Para sempre.

O pintassilgo foi copiosamente representado na pintura sacra do Renascimento e em períodos posteriores, evocando sobretudo a Ressurreição, mas também a morte e sacrifício. Em 1946, o zoólogo americano Herbert Friedmann publicou The Symbolic Goldfinch: Its History and Significance in European Devotional Art e listou 486 pinturas com representações do pintassilgo atribuídas a 254 pintores, quase todos italianos. Qual a razão para este domínio alegórico de um pássaro polícromo e comum nas paisagens da Europa? Friedmann referiu que o simbolismo do pintassilgo provinha de lendas disseminadas desde o séc. XIII. Umas delas, já a referi; outra baseia-se no livro apócrifo sobre a infância de Jesus: os Seus companheiros de folia traziam-Lhe pássaros de barro que Ele, milagrosamente, fazia renascer.

O pintassilgo simbolizava primordialmente a Ressurreição e a Paixão. Mas há algo de real nos hábitos do pintassilgo que ajudou a consolidar o seu simbolismo: alimenta-se de sementes diversas, alguns artrópodes, cardos e outras plantas espinhosas, facto que foi interpretado como uma alusão à coroa de espinhos de Cristo. E por serem tão coloridos e conspícuos, os pintassilgos sempre foram facilmente reconhecidos, o que facilitou a difusão do seu valor alegórico. Na verdade, mesmo quem hesita em distinguir um pardal-doméstico de outros pássaros, é capaz de identificar um pintassilgo.

Deixemos o figurativo e falemos da realidade: os pintassilgos ocorrem nas paisagens rurais da Europa desde o sul da Escandinávia à Região Mediterrânica. Os dados mais recentes do PECBMS (o Programa Pan-Europeu de Monitorização de Aves Comuns) mostram um incremento moderado das suas populações entre 1980 e 2016. Num artigo anterior aludi ao PECBMS e à sua importância na sinalização de indicadores do estado do ambiente. Expliquei o que são “espécies comuns”, e referi que das 39 espécies associadas aos meios agrícolas da Europa, a maioria se encontra em declínio!

Monitorizar animais que são comuns pode parecer bizarro numa óptica de conservação da biodiversidade, pois é usual considerarmos que os esforços e recursos devem ser dirigidos a espécies raras e ameaçadas. E isso é verdade! Mas monitorizar aves assaz distribuídas e muitas vezes abundantes tem uma enorme vantagem: como são numerosas e têm uma distribuição alargada, a detecção de variações temporais dos seus efectivos é robusta e atenua os efeitos do acaso nas oscilações numéricas das populações locais. Ou seja, se as abundâncias duma espécie comum mostrarem um decréscimo à escala do continente, há segurança nessa tendência. É o caso da rola-brava, uma ave migradora cujas populações diminuíram 80% (!!) entre 1980 e 2016 (29% nos últimos 10 anos) e do picanço-barreteiro, um migrador nidificante com um declínio de 37% no período 1998-2016. Esta ave insectívora está representada no logotipo da Conferência Bird Numbers 2019, evento que decorrerá entre 8-13 de Abril na Universidade de Évora sob o lema “contar aves conta”.

E conta realmente muito para a sociedade! Conhecer as dinâmicas em ganhos e perdas das aves comuns dá-nos mais informação do que o mero progresso das suas populações. Revisitemos o PECBMS: o seu principal objectivo é o de utilizar as aves comuns como indicadores do estado do ambiente na Europa, através da monitorização em larga escala e a longo prazo das suas populações nidificantes. Porquê o foco nas populações nidificantes? Porque é biologicamente importante e metodologicamente útil: na reprodução está em jogo o recrutamento da geração seguinte e, portanto, o êxito ou fracasso do crescimento populacional; e como neste período a maioria das aves está acantonada espacialmente, isso facilita a sua amostragem.

Os dados mais recentes sobre as aves comuns na Europa mostram duas realidades distintas: o grupo das espécies florestais apresenta uma relativa estabilidade nos últimos 10-15 anos; ao invés, as aves associadas aos meios agrícolas mostram um declínio impressionante de 57% desde 1980.

O que justifica este declínio? A resposta detalhada não cabe neste texto, mas as mudanças nas práticas agrícolas que ocorreram nas últimas décadas (intensificação e especialização), o desaparecimento de sebes naturais e habitats marginais e o aumento do uso de fertilizantes e pesticidas, têm contribuído para este impressionante decréscimo.