Roberto Bolaño e a liberdade para pensar
Devemos recordar Bolaño pela sua genialidade literária mas também pela sua coerência face aos tempos pós-modernos, um exemplo para aqueles que trabalham com a Cultura e com as Artes.
Passaram já mais de 15 anos da morte de Roberto Bolaño que, se estivesse vivo, cumpriria no próximo mês 66 anos. Bolaño faz parte do último lote de grandes escritores chilenos como Vicente García-Huidobro, Gabriela Mistral, Pablo Neruda e Nicanor Parra; foi capaz de levar a narrativa a um patamar nunca antes alcançado no Chile, onde sobretudo sobressaiam os poetas.
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Passaram já mais de 15 anos da morte de Roberto Bolaño que, se estivesse vivo, cumpriria no próximo mês 66 anos. Bolaño faz parte do último lote de grandes escritores chilenos como Vicente García-Huidobro, Gabriela Mistral, Pablo Neruda e Nicanor Parra; foi capaz de levar a narrativa a um patamar nunca antes alcançado no Chile, onde sobretudo sobressaiam os poetas.
Mas quem foi realmente Roberto Bolaño? Poderá ser considerado um escritor chileno, sendo que deixou o país com apenas 15 anos? Sabemos que, apesar de se ter formado como escritor fora, no México e em Espanha, Bolaño se considerava chileno, assim o deu a entender; afirmaria mesmo, em entrevistas, que foi sempre um estrangeiro nesses países: era o chileno e também (parece-nos) sempre quis ser o chileno. No entanto, mesmo para aqueles que questionam a sua relação com o país, a maior prova da sua “chilenidade” foi a escolha do nome do seu primeiro filho: chamou-lhe Lautaro (líder mapuche que se rebelou contra o domínio espanhol), haverá nome mais chileno que este? É certo que ao lermos Bolaño não vemos nele um escritor inteiramente chileno, apesar das proximidades distópicas com Nicanor Parra – mas Nicanor é poeta, um anti-poeta – Bolaño é mais Kafka, um Kafka Latino, que joga como ninguém com os dois continentes, com o velho e com o novo mundo. Bolaño enquanto escritor não é de facto chileno, é mais do que isso, é provavelmente o melhor exemplo da literatura latino-americana pós-moderna, nele se reflete, como em nenhum outro, a teoria de Canclini das culturas híbridas: Bolaño entra e sai da modernidade quando quer e bem lhe apetece.
Aceitando a “chilenidade” de Bolaño, recordemos um pouco do que era o Chile quando o autor nasceu (1953) e o que terá levado a sua família – apesar de tudo urbana e letrada, mas humilde – a deixar o país e a emigrar para o México a tempo de viver o 68 mexicano tão bem retratado em Amuleto. Nos anos 50 e inícios dos anos 60 o Chile era um dos países menos desenvolvidos da América Latina, um país dominado, ainda, pelos grandes latifúndios e onde a indústria mineira – grande motor do país na atualidade – estava, todavia, em mãos estrangeiras, aspetos que transparecem num documentário francês sobre o Mundial de 1962: La République du bout du monde. Era um país de poesias, da escrita bucólica do campo e da cidade de bairros geminados onde todos se conheciam; não era ambiente que permitisse grandes narrativas, essa atmosfera chegaria pouco tempo depois com a almejada reforma agrária e com o grande afluxo de gente às cidades…
Ainda embriagado pelo bulício estudantil do México, Bolaño decide regressar ao país que o vira nascer para experienciar a chamada “Primavera Allendista”, viajando à boleia desde o país azteca até ao Chile, numa larga viagem que lhe permitiu conhecer praticamente todo o continente. No entanto, duraria pouco tempo a experiência de Bolaño no Chile, chegou em agosto de 1973 – um mês antes do Golpe Militar de 11 de setembro – e, em janeiro de 1974, já estava fora do país. A experiência não correu como esperava, esteve preso uns dias e acabaria por regressar ao México, uma vez mais viajando à boleia. Regressaria 25 anos depois. O seu país de origem perdera a influência de Cuba – imposta pelo PCCH –, mas começava também a perder o cristianismo social de Eduardo Frei, com pequenas doses de veneno; a moderação e a inteligência de Radomiro Tomic, exiliado na Suíça; a melodia sagaz de Victor Jara, em cinco minutos e, por fim, a democracia.
O Chile deixou de ser um país para escritores: uma das medidas mais emblemáticas do neoliberalismo autoritário adotado por Pinochet foi precisamente a criação de um elevadíssimo imposto ao livro, “tradição” que ainda hoje se mantém, tendo o IVA mais elevado do mundo para publicações. A consequência é óbvia: os chilenos deixaram de comprar livros e, consequentemente, os escritores deixaram de ter trabalho no país de Neruda, este aspeto, em conjunto com a censura, levou ao chamado “apagón cultural” experimentado pelo Chile durante o período da “Ditadura liberal”, tal como o refere Karen Donoso. Contudo, se por um lado, Pinochet tirava com uma mão aos livros, com a outra, dava alguns apoios à televisão que – com a devida censura – abria novos canais, expandia o cabo e, aplaudia os programas de grande entretenimento e os famosos matinais que hoje em dia estão em voga nas televisões portuguesas. As donas de casa ficavam entretidas, deixavam de pensar em política, filosofia e as torturas, enfim, viviam.
Nos anos 80 vamos encontrar Roberto Bolaño em Espanha, mais propriamente na Catalunha, depois de anos muito intensos na cidade do México onde, em conjunto com Mário Santiago e outros jovens escritores, criou o movimento poético do infrarrealismo. É precisamente sobre esta experiência que Bolaño se viria a tornar conhecido, usando-a para ilustrar o seu primeiro grande romance premiado: Los Detectives Selvajes, publicado em 1998.
Mas até chegar ao sucesso, em finais dos 90, Bolaño passou por dificuldades, trabalhou de segurança num parque de campismo, em restaurantes, lavando pratos, como recolector de lixo, estivador, entre outros exercícios difíceis, teve dois filhos, não teve a quem os deixar, não tinha dinheiro, teve de conciliar a sua escrita cansado, às vezes com os filhos doentes: não é fácil escrever assim, só os talentosos o conseguem. Jorge Edwards e Mário Vargas Llosa nunca tiveram de passar por isso e mesmo Gabriel García Márquez, quando comparado com Bolaño, foi um privilegiado. Porém, essa impregnação de realismo era fundamental para Bolaño, necessária para a sua escrita, pois como o próprio disse, em 1999, na entrevista ao jornalista/poeta Cristián Warnkén (Canal 13) “a literatura também é sentido comum, é a vida diária”. Não obstante, Bolaño não se caracteriza somente pelo seu realismo distópico, caracteriza-se também pelo seu profundo conhecimento dos clássicos da literatura ocidental: nos diálogos entre Sebastián Urrutia Lacroix e Farewell em Nocturno de Chile e entre Ulises Lima e Arturo Belano em Detectives Selvajes vemos Joyce, Baudelaire, Faulkner, Cervantes, Rimbaud e muito Stendhal.
O amor pela literatura de Bolaño era incrível – estava acima de tudo – o mesmo recordava, na entrevista a Warnkén, uma história de zanga com o seu amigo mexicano Mário Santiago que, como ele, era um leitor voraz, não conseguia parar de ler; de tal modo que andava com os livros para toda a parte, inclusive chegava a leva-los para o duche (livros esses que eram de Bolaño), molhando-os, o que representava uma catástrofe para o chileno. Hoje em dia alguém se chateia com um livro molhado? A vida de Bolaño era a literatura, ainda assim não era daqueles literatos que se refugiam na intelectualidade para “apagar” a realidade, o Dasein, não era um homme intellectuel que se escuda na arte e na estética ignorando o mundo, ignorando as injustiças, as desigualdades. Nocturno de Chile mostra o lado negro da Cultura, dos supostos eruditos de boas famílias que, sobre o manto do dito “bom gosto”, se “isolam” da humanidade, têm asco do mundo real, são incapazes de reagir perante a mais ignóbil tortura. O mesmo Sebastián Lacroix (protagonista do livro) não sabe como atuar perante a história que lhe contam de alguém que numa festa em casa de María Canales viu: “una espécie de cama metálica. Encendió la luz. Sobre el catre había un hombre desnudo, atado de las muñecas y de los tobillos. Parecía dormido, pero esta observación es difícil de verificar, pues una venda le cubría los ojos”. Esse alguém não fez nada, bebeu outro whisky, esse alguém era um intelectual, a casa de Maria Canales só era frequentada por intelectuais e eruditos. Mas Bolaño também “entrega” o outro lado, o da humanidade comprometida, maternal, representada por Auxilio Lacouture em Amuleto. Permite-nos, assim, fazer escolhas, seguir caminhos…
A geração de Bolaño não pôde persistir no Chile, não deixou frutos, as sementes foram levadas para outras partes: “una generación entera de jóvenes latinoamericanos sacrificados” como se pode ler no seu livro Amuleto. A geração que lhe seguiu não teve sobre si uma mão tão pesada, mas a Cultura já era outra… os anos 80 e 90 representaram o auge do neoliberalismo conservador no Chile, o fim do livro e o apogeu da televisão, elementos tão bem representados nas canções dos Los Prisioneros, em particular na canção “El baile de los que sobran” que retrata o fim da ilusão de uma juventude que ambicionava por uma meritocracia que nem os estudos nem o regime liberal foram capazes de dar. Mas há sempre vida, há sempre algo que fica a germinar e a Cultura tenta agora – 40 anos depois – brotar novamente no Chile com dificuldade…
Devemos recordar Bolaño pela sua genialidade literária mas também pela sua coerência face aos tempos pós-modernos, um exemplo para aqueles que trabalham com a Cultura e com as Artes. Resiliente perante as adversidades, inconformado frente às injustiças sociais, coerente com as suas ideias, mantendo sempre a sua integridade e liberdade. Bolaño nunca foi um escritor cortesão nem um museólogo da representação… é tão difícil manter esta postura na atualidade. A crise da dívida pública europeia teve um impacto tremendo nas áreas culturais, “entregando-as” ao elitismo funcional, aos grupos de interesses onde, por detrás de um aparente liberalismo, surge uma mão controladora (um liberalismo de interesses e não das liberdades individuais), criou indústrias e operários culturais, mecanizou o humano, menospreza o talento e a criatividade; assim, recordar Bolaño é recordar a importância da liberdade de pensar – é preciso ganhar coragem para pensar, não ter apenas opinião, seguindo as palavras do próprio autor chileno em Detectives Selvages, antes da revelação poética de Ulises Lima “hay momentos para recitar poesías y hay momentos para boxear”.
PS: Por não conhecer as traduções portuguesas de Bolaño e por respeito a esse trabalho, optei por utilizar os títulos e citações em castelhano.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico