A Guerra dos Tronos é a série que merecíamos

Um blockbuster televisivo, uma série de fantasia impiedosa, violenta, sexual, problemática, chega agora ao fim — a partir de dia 15. É uma rara experiência global no meio de demasiada TV. Leva-nos de volta à forma como costumávamos ver televisão — um passado em que todos viam a mesma coisa, semanalmente, e podiam comentá-la no dia a seguir na escola, no trabalho, no café. É um paradoxo nestes tempos em que as opções são ilimitadas e a fragmentação dos públicos inevitável. Sem spoilers.

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Merecíamos poder falar “todos”, como antigamente, de uma série. Estávamos a pedi-las porque Tolkien ganhou Óscares e já conhecíamos bem Tony Soprano e Walter White. Nós, os agora poderosos fãs, estávamos mesmo a pedir uma série de fantasia impiedosa, violenta, sexual, exigente, problemática. A Guerra dos Tronos é um blockbuster televisivo e uma hoje rara experiência partilha no pequeno ecrã. A sua patrulha chega agora ao fim.

Éramos tão inocentes. E livres. Em 2011, tínhamos tempo. Havia muito menos televisão. O termo binge watching estava ainda a dois anos de distância de se tornar no modelo de consumir televisão, embora as caixas de DVD fossem um prelúdio do que o Netflix nos ensinaria. Desde 2011, quando se estreou uma série de fantasia de grande orçamento baseada numa saga literária no canal norte-americano HBO, o número de séries produzidas aumentou 87%. Começávamos a escalada do “Peak TV”, estes anos de demasiada televisão, para um mundo onde hoje há cerca de 500 títulos por ano nos EUA, com largas dezenas deles a chegar a Portugal através do cabo e dos novos serviços de streaming.

A Guerra dos Tronos, que nove anos depois chega agora ao fim a partir de dia 15, destacava-se de mansinho numa altura em que víamos cada vez mais no nosso tempo, e não no tempo colectivo. Há fenómenos que de vez em quando despontam, mas nada com a magnitude conhecida de A Guerra dos Tronos.

Quase uma década depois “tornou-se numa constante”, como diz ao Ípsilon a professora e medievalista norte-americana Kavita Mudan Finn. “É uma das poucas séries que conseguiu sobreviver a esse período.” Hoje, é a rara conversa sobre uma série que é vista por muitos – e não “todos”, é certo, porque o plural é arriscado no país do futebol e reality shows e no mundo de tantas outras séries bem mais acessíveis; mas é tentador quando falamos neste desporto de sofá que é ver séries dramáticas, precisamente porque há hoje tão poucas que agreguem assim.

É um produto do seu tempo e quase fora do tempo. É uma história num mundo ficcional no passado, com muitos povos, tribos e culturas minuciosamente construídas em torno de lutas por amor e poder. Tornou-se num franchise, como a Marvel ou Star Wars ou Harry Potter, mas sem a dimensão juvenil. Tem efeitos visuais e orçamentos milionários e é um novelo televisivo com pontas soltas na literatura e um desejo de futuro – “o que é a próxima Guerra dos Tronos?” – e uma gigantesca dívida aos fãs, ao momento da história da televisão em que surgiu e ao orçamento da HBO.

A Guerra dos Tronos é uma festa no fim de uma versão específica do mundo que vê televisão”, escrevia em 2017 a crítica Alison Herman, quando da estreia da temporada mais recente (2018 serviu para filmar os minifilmes que serão os seis episódios finais). É, concorda com o Ípsilon o professor Robert J. Thompson, um paradoxo nestes tempos em que as opções são quase ilimitadas e a fragmentação dos públicos inevitável. “Tem uma audiência muito maior do que qualquer série no século XXI, e ainda mais sendo na HBO, um canal premium”, diz o director do Centro Bleier para a Cultura Popular da Universidade de Syracuse.

A Guerra dos Tronos é, mesmo com muitos milhões que nunca viram a série ou pegaram num dos livros d’As Crónicas de Gelo e Fogo de George R.R. Martin que lhe serve de base, uma experiência global. Cada temporada custa hoje mais de 100 milhões de dólares – também já merecíamos ver os efeitos visuais dos filmes Marvel ao serviço de dragões televisivos – e juntava a certa altura 23 milhões de espectadores, em média, nas diferentes plataformas nos EUA. Dinastias em contenda, um elenco tentacular em que é difícil identificar um só protagonista e uma filigrana de religiões e misticismo inspiradas na Guerra das Rosas do século XV britânico tornaram-se numa fábula dos nossos tempos onde cabe toda a gente - mesmo quem nunca se interessou por dragões, lobos gigantes e zombies de gelo.

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Está em mais de 170 mercados, salienta a investigadora de Media Amanda Lotz, que frisa como “a expressão ‘espectadores em todo o mundo’ nunca se aplicou antes a estreias de televisão. Durante grande parte da sua história, a televisão foi um meio profundamente nacional”. Até agora, e Tronos beneficia muito disso.

Mil milhões de piratas

Em 2019, A Guerra dos Tronos é também o rosto da chegada da HBO a Portugal, criando uma situação inédita que é a da transmissão em simultâneo com os EUA em duas plataformas concorrentes em Portugal - o novo serviço de streaming da HBO e o canal por cabo SyFy, que emite a série em Portugal desde 2011 e que em 2017 teve a sua maior audiência de sempre no nosso país com 140 mil espectadores e 11% de share no primeiro episódio da 7.ª temporada. Esta estreia é toda uma operação, como aquela que a PSP “multou” por excesso de velocidade Daenerys Targaryen, a rainha dos dragões da série e que em 2016 motivou a brincadeira no Facebook da polícia portuguesa.

E embora o mundo não seja o de M*A*S*H*, a série cujo final foi visto por 106 milhões de americanos em 1983, nem sequer o da novela Gabriela ou do primeiro Big Brother em Portugal, quando 60% de quem estava a ver televisão estava com o reality show da TVI, este é o mundo de A Guerra dos Tronos. A série tem também a dúbia honra de ser a mais pirateada nos últimos anos: a temporada anterior foi pirateada mil milhões de vezes desde Setembro de 2017, números da empresa anti-pirataria Muso que mostram como o facto de ser uma série de um canal pago nada retira à sua popularidade e apelo global. O episódio final foi visto em directo nos EUA por 16,5 milhões de pessoas, mas foi visto na internet gratuita 120 milhões de vezes nos três primeiros dias desde que estreou. “É o maior fenómeno global de entretenimento da actualidade e a actividade [que gera] nas redes de pirataria não tem precedentes”, diz Andy Chatterley, presidente da Muso, ao Washington Post.

É esta febre que leva Alison Herman, crítica do site The Ringer, a dizer que “A Guerra dos Tronos é o último vestígio da monocultura” televisiva. É uma tese ambiciosa que desenha A Guerra dos Tronos como um oásis de língua franca entre terras de microfenómenos. Desde que se estreou, “a forma como vemos televisão mudou muito, embora isso tenha significado muito pouco para A Guerra dos Tronos”, diz ao Ípsilon a investigadora australiana Amanda Lotz. “De muitas formas, leva-nos de volta à forma como costumávamos ver televisão – a uma hora fixa, um episódio por semana.” Ou seja, ao passado televisivo em que todos viam mais ou menos a mesma coisa, semanalmente, e podiam comentá-la no dia a seguir na escola, no trabalho, no café.

“Há quem argumente que ter uma cultura anglo-americana partilhada nos dá uma sensação comunitária de pertença, partilhando preocupações e valores numa altura em que a política, etnia ou religião muitas vezes nos dividem”, escrevia em 2016 Scott Timberg, autor de Culture Crash: The Killing of the Creative Class, na Salon. O desejo de participar na conversa tem feito a audiência da série a crescer – há sempre novos espectadores a entrar na dança dos dragões, vendo o que está para trás ou entrando, a sangue frio, na canção de Jon Snow e companhia.

Porque, como resume Ana Jorge, professora de Comunicação na Universidade Católica que estudou a mecânica da cultura de fãs, a nostalgia desses tempos mais simples também pode ser posta ao serviço de uma série de que toda a gente fala. “A nostalgia na cultura actual tem muito peso - as pessoas procuram coisas que vêem como mais autênticas, como mais intensas, procuram produtos culturais que façam a diferença e que quebrem essa fragmentação.”

Nesse sentido, a conversa que põe A Guerra dos Tronos nas ruas, nos jornais ou nos supermercados, é a essência da TV. “É sempre excitante para qualquer cultura ter coisas em que toda a gente participa. Era uma das glórias dos primeiros tempos da televisão – ricos, pobres, velhos, novos, brancos, negros, homens, mulheres viam a mesma coisa. A cola cultural é importante”, admite Robert Thompson. “Mas no fim de contas, o último vestígio da monocultura actual é o Super Bowl”, ri-se. A Guerra dos Tronos não é esse artefacto de tempos idos, defende, mas sim “a prova de que ainda pode haver um programa, nesta era do conteúdo infinito, que deixe a sua marca. É sim um blockbuster”.

Do outro lado do mundo, a australiana Amanda Lotz também desvaloriza – é uma série cuja violência, complexidade, magia e política sexual não chega nem agrada a todos. “Acho que as redes sociais fazem-na parecer monocultura. A possibilidade de ser visto em simultâneo em todo o mundo (através de meios legítimos) é o que me faz chamar-lhe um blockbuster global”, esclarece a autora de We Now Disrupt this Broadcast: how cable transformed television and the internet revolutionized it all.

Um legado impiedoso

Esta é uma série que leva a rainha Isabel II contemplar o trono de ferro numa exposição para delícia dos fotógrafos e que fez o então Presidente Barack Obama pedir novos episódios dias antes da estreia, perturbado pela morte de uma personagem central. Junta a realizadora Kathryn Bigelow, o rapper Snoop Dogg, os islandeses Sigur Rós ou o metal dos Mastodon, o político português Francisco Louçã e o secretário-geral do espanhol Podemos Pablo Iglésias numa grande família de fãs. Porquê? “É muito mais exigente intelectualmente”, diz Thompson, “é desenraizada de um lugar”, diz Lotz. “É um universo incrivelmente imersivo, com tantas personagens, geografias, culturas. As pessoas querem habitar esse universo, querem escapar para lá”, resume Kavita Mudan Finn sobre a grande atracção, no fundo, do género fantasia. E depois há o seu legado impiedoso.

“A luta entre o bem e o mal está no coração humano. Todos temos a capacidade para ambos”, dizia George R.R. Martin ao PÚBLICO em Lisboa em 2012, em plena combustão da fama planetária. Queria mostrar que tudo é possível e que o mundo (da fantasia) não é a preto e branco.

“O momento que fez A Guerra dos Tronos passar de ser sucesso para ser um fenómeno foi a execução de Ned Stark”, postulava em 2017 o crítico de televisão Alan Sepinwall sobre o início da história. “Muitas, muitas, muitas séries já mataram personagens importantes, mas eliminar o mais próximo que a série tinha de um protagonista e um herói inequívoco tão cedo? Era inédito e criou um ethos ‘Qualquer pessoa pode morrer’ que é talvez a coisa mais influente que A Guerra dos Tronos fez.”

A Guerra dos Tronos não chegou no vazio – um ano antes tinha surgido The Walking Dead, outra série do género e que também já tinha uma comunidade de fãs investida nos livros que precedem a sua vida televisiva. Muito antes, tinha havido uma revolução na televisão, com A Balada de Hill Street a quebrar com “a televisão dos anos 1950, 60, 70, cheia de coisas tontas – freiras voadoras, cavalos falantes, mães reencarnadas em carros”, como lembra Robert Thompson. No cinema, o ídolo de George R.R. Martin, J.R.R. Tolkien, ajudava. “Quando a trilogia Senhor dos Anéis se estreou, de repente a fantasia tornou-se interessante para o grande público”, completa a professora norte-americana Kavita Mudan Finn, que editou o livro Fan Phenomena: Game of Thrones. “Mas também há os twists particulares HBO, o negrume, violência, o gore. Tudo o que esperamos de séries como Os Sopranos (HBO) ou Breaking Bad (AMC)”. Daí à “televisão literária, sofisticada e complexa tornada verdadeiro blockbuster no contexto actual”, como diz Robert Thompson, foi o voo de um corvo. Não é por acaso que um dos seus criadores, David Benioff (que assina a série com D.B. Weiss), lhe chamava “Os Sopranos na Terra Média”.

Agora, além das séries-prequela que estão em pré-produção e dos livros que ainda falta escrever, A Guerra dos Tronos pode também ser o prenúncio do futuro. “Fora a forma como são distribuídas e a forma como são editadas, há uma fronteira muito ténue entre uma temporada de Guerra dos Tronos e os filmes Star Wars”, teoriza Amanda Lotz. “Hoje, questiono-me se ‘televisão’ e ‘cinema’ são categorias menos úteis do que ‘vídeo’. [No futuro] haverá blockbusters de vídeo, mas a forma como os vemos é que pode mudar.”

A indústria do fã

Os fenómenos que descreve têm em comum serem ímanes de grandes comunidades de fãs. À volta de Tronos criou-se uma “enorme conversa transmedia – não só a ver a série e falar disso nas redes sociais, em grandes fóruns públicos, nas convenções. Desenvolveu uma subcultura à sua volta”, diz Kavita Mudan Finn. Tornou a cultura de spoilers obsessiva, espraiou-se em várias plataformas.

“Em A Guerra dos Tronos, o universo é suficientemente amplo para acolher diferentes pessoas e seus interesses sobre a guerra, sobre intriga cortesã e Maquiavel, sobre romance – há linhas narrativas para tudo isso, é como uma grande tenda onde cabem muitas pessoas”, explica ao Ípsilon a investigadora. Entre essas muitas pessoas, diz Ana Jorge, estão os fãs originais dos livros publicados a partir de 1996 e que ainda não terminaram – a série, para amargura do escritor George R.R. Martin, é também inovadora por ir escrever o seu final antes do seu autor original conseguir fazê-lo. “Os fãs de fantasia têm muita visibilidade, criaram um padrão do que deve ser a experiência de ser fã”, explica a docente.

Fazem hoje parte decisiva da indústria como se vê desde que, no final do século XX, emergiu com pujança a “fan culture” no mainstream e começou o campo académico do estudo de fãs e “fandom”, “resultado de como a cultura popular se tornou cada vez mais globalizada”, detalha Ana Jorge. Já na viragem do século, começou a “indústria das recapitulações” de episódios online, ideal para séries que exigem compromisso e altamente serializadas. Twittar ao vivo, estar nos sites de fãs, ouvir podcasts em inglês ou português, discutir no Reddit, tudo é uma expansão da experiência. Saber mais, consumir mais e mais. No fundo, ir ficando, arrastar o tempo em Westeros ou nas cidades livres, demorarmo-nos além da Muralha.

“Tornou-se fácil passar mais tempo envolvidos com os fãs e o ‘fandom’ de um franchise do que com o próprio franchise”, escrevia Caroline Siede no site Quartz em 2016. Ser fã “tornou-se uma forma de entretenimento por direito próprio”, uma indústria dentro da indústria e que a mudou. “A indústria sabe o poder que pode ter junto dos fãs e que os fãs querem ter junto da indústria”, destaca Ana Jorge. A própria televisão reagiu ao que via online e quis capitalizar a sede de mais conteúdos sobre as séries, criando os seus programas de análise, "aftershows" como Thronecast ou After the Thrones. Já o autor da história que agora não vai terminar relacionou-se com os fãs de uma forma original: Elio Garcia e Linda Antonsson são dois fãs cuja paixão pel’As Crónicas de Gelo e Fogo os tornou nas bases de dados ideiais para assinar com Martin o livro sobre o universo The World of Ice and Fire.

Os fãs, no fundo, estavam a pedi-las. E a precisar. “Não tinha ideia da gigantesca comunidade que existe na Índia, por exemplo, e cujas ligações com a comunidade LGBT é muito forte. Há até uma versão hindi de Guerra dos Tronos”, exemplifica Kavita Mudan Finn. A série que merecemos como público habituado a ser desafiado tem homofobia, xenofobia, misoginia, usa a violação como ferramenta narrativa para indignação dos espectadores e faz do incesto, da nudez, da deficiência ou da escravatura pólos de discussão. Foi elogiada aos píncaros e, nas últimas temporadas, tanto criticada quanto amada. O mundo das “mamas e dragões”, como resumiu o actor Ian McShane, não é perfeito. Mas ainda assim, nessa posição periclitante “mesmo antes deste grande zeitgeist Netflix”, como resume Kavita Finn, e “no auge da mais radical das mudanças” na televisão, como situa Robert Thompson, A Guerra dos Tronos é a série que merecia este público “treinado a ver televisão com as luzes desligadas e a prestar atenção”.