Na Península Ibérica também se cortaram cabeças

Nova exposição no Museu Nacional de Arqueologia de Madrid mostra que a prática de conservar a cabeça de inimigos ou de antepassados não deixou de fora os iberos. Ate 1 de Setembro.

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Crânio do século III a.C. encontrado em Ullastret, Girona Museu Arqueológico Nacional, Madrid

Quando ouvimos falar em decapitações rituais e na exibição das cabeças decepadas de inimigos mortos em batalha, o mais habitual é que as associemos às civilizações pré-colombianas ou a povos do norte da Europa. O que a nova exposição do Museu Nacional de Arqueologia de Madrid vem agora mostrar, através de vários exemplares recolhidos no noroeste da Península Ibérica, é que essa prática também por aqui passou há pelo menos cerca de 2300 anos.

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Quando ouvimos falar em decapitações rituais e na exibição das cabeças decepadas de inimigos mortos em batalha, o mais habitual é que as associemos às civilizações pré-colombianas ou a povos do norte da Europa. O que a nova exposição do Museu Nacional de Arqueologia de Madrid vem agora mostrar, através de vários exemplares recolhidos no noroeste da Península Ibérica, é que essa prática também por aqui passou há pelo menos cerca de 2300 anos.

Cabeças Cortadas: Símbolos do Poder (até 1 de Setembro) reúne dezenas de peças oriundas de vários museus espanhóis para explorar os diversos significados - e os diversos contextos - das chamadas “cabeças troféu”, desde a pré-história ao mundo contemporâneo. Não nos esqueçamos, lembrou à Rádio Nacional de Espanha (RNE) Carmen Rovira, uma das suas comissárias, que a decapitação de inimigos com fins propagandísticos continua a ser feita por grupos extremistas em África ou no Médio Oriente. “Passaram milhares de anos e, inexplicavelmente, estas atrocidades continuam a repetir-se”, disse à RNE. 

Os vestígios mais antigos presentes na exposição são da Idade do Ferro e pertencem ao Museu de Arqueologia da Catalunha. Datam mais precisamente do século III a.C., são vários crânios saídos das escavações do povoado de Puig Castellar e têm a particularidade de terem sido atravessados por uma cavilha de ferro. 

Este grande prego, explica Rovira, que partilha o comissariado de Cabeças Cortadas: Símbolos do Poder com Gabriel de Prado, terá sido colocado poucas horas depois de morto o indivíduo, muito provavelmente para que a sua cabeça fosse exibida num local público, ao lado das suas armas. 

Na exposição, junto a estes crânios de Puig Castellar estão outros encontrados no decorrer de escavações muito mais recentes - começaram em 2012 - “na grande metrópole do mundo ibero”, Ullastret (Girona). 

“Temos muitos exemplos de ‘cabeças troféu’ de todo o mundo na exposição, e de épocas diferentes, mas as dos iberos são as mais importantes e foram agora estudadas”, disse a comissária. 

Lembra o diário El País que, desde o neolítico (período que começou há dez mil anos e não em todo o lado ao mesmo tempo) que há provas destas práticas de decapitação. Geralmente ocorrem, continua Carmen Rovira, por dois motivos: porque quem o faz quer homenagear o antepassado morto e manter junto a si as suas qualidades; ou simplesmente porque se trata de um inimigo e cortar-lhe a cabeça para em seguida a exibir publicamente é um sinal óbvio de vitória, uma forma de dissuadir outros de eventuais futuros confrontos e uma estratégia de reforço de um líder ou de um jovem guerreiro.

Os cinco crânios de iberos que agora se mostram no museu de Arqueologia de Madrid encaixam nesta segunda categoria. E como se sabe que são troféus de inimigos? Graças ao trabalho dos antropólogos, dos arqueólogos e de outros especialistas que têm vindo a estudá-los. 

Esta equipa, que contou também com um artista forense que seguiu os mesmos protocolos de reconstituição usados pelo FBI nas actuais investigações criminais, recriou também e pela primeira vez o rosto de um guerreiro ibero que terá vivido há 2300 anos. Era ainda um adolescente, com os olhos pequenos e afastados, e com os dentes ligeiramente salientes, precisa Rovira. Provavelmente nunca antes se vira envolvido numa batalha, já que o seu crânio não apresenta vestígios de lesões anteriores. 

Os arqueólogos que há sete anos a descobriram em Ullastret, assim como os antropólogos que desde então a estudaram, acreditam que, depois de separada do corpo, a cabeça do jovem guerreiro foi enfiada num saco e levada a cavalo para aquela cidade muralhada, sendo colocada na fachada da casa de um nobre, muito possivelmente do homem que o matou, junto a uma espada de ferro, escreve o diário espanhol. Para ali a prenderem usaram uma cavilha com 23 centímetros.

Esta prática de associar a cabeça cortada à arma do guerreiro vencido não é exclusiva dos iberos - está documentada, por exemplo, na Gália, explicou ainda a comissária à Rádio Nacional de Espanha. “Hoje as ciências forenses trazem informação fantástica. Hoje sabemos se determinada cabeça foi cortada por um destro ou um canhoto, sabemos se o atacante estava de frente ou apareceu por trás ou de lado…”

Desde 2012 que os arqueólogos recolhem centenas de fragmentos que têm vindo a estudar. Ao diário El País o director do museu catalão prometeu apresentar em breve mais resultados sobre estas mortes terríveis. 

“A maioria destes guerreiros teria entre 16 e 18 anos”, disse a comissária à rádio. “Mas há outros com 40 e mais… É preciso continuar a estudar os vestígios.”

A cultura ibera, própria do território em arco que ia do actual Languedoc francês à Andaluzia, precisa o jornal espanhol, desapareceu com a chegada dos romanos à Península Ibérica.