Bebe? Dois copos de vinho podem fazê-lo perder o seguro de vida
Tribunal da Relação do Porto dá razão à seguradora que se recusou a pagar crédito para habitação de cliente à Caixa Geral de Depósitos por se encontrar alcoolizado quando morreu.
José entrou no café do costume em Amarante e pediu meio bagaço. Cliente habitual da casa e não era a primeira vez que o viam cair no chão. Neste dia do final de Junho de 2014 voltou a suceder: caiu para trás, inconsciente.
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José entrou no café do costume em Amarante e pediu meio bagaço. Cliente habitual da casa e não era a primeira vez que o viam cair no chão. Neste dia do final de Junho de 2014 voltou a suceder: caiu para trás, inconsciente.
Quis a má sorte que desta vez batesse com a cabeça e que nunca recuperasse do traumatismo crânio-encefálico que sofreu. Quando morreu tinha 42 anos, estava desempregado há já algum tempo e faltavam-lhe pagar 35 mil euros de um empréstimo para habitação de 45 mil contraído mais de uma década antes junto da Caixa Geral de Depósitos. A viúva accionou o seguro de vida obrigatório que tinham contratado à Fidelidade, mas disseram-lhe que o marido nunca avisara a companhia de que se tinha tornado alcoólico, com todos os riscos que isso implicava. Quando morreu, José apresentava 1,45 gramas de álcool no sangue.
Tal como muitos outros clientes dos empréstimos à habitação, também José não se tinha dado ao trabalho de ler o contrato do seguro. Dizia uma das cláusulas que a companhia se eximia de responsabilidades quando o segurado acusasse “consumo de produtos tóxicos, estupefacientes ou outras drogas fora de prescrição médica, bem como quando lhe for detectado um grau de alcoolemia superior a 0,5 gramas por litro de sangue”. Na verdade, quando assinou a apólice José não tinha escondido os seus hábitos: escreveu que consumia uma garrafa de vinho verde por dia. Mesmo assim, a Fidelidade aceitou-o como cliente – mantendo, porém, a cláusula de exclusão de responsabilidade. Um contra-senso que não escapou ao juiz do Tribunal de Marco de Canavezes que, no ano passado, mandou a seguradora entregar à CGD os 35 mil euros que faltavam para acabar de pagar a habitação do casal. Nunca se apurou ao certo o motivo da queda fatal – razão pela qual não se pode afirmar com certeza ter sido o bagaço, ou outra bebida qualquer.
"Situações absurdas"
Logo na altura se pôs a questão de se saber se a cláusula em causa, presente em muitas outras apólices do género, se aplicava apenas a situações em que da ingestão de bebidas resultassem acidentes graves ou morte ou se, pelo contrário, bastava o segurado ter mais de 0,50 gramas de álcool para a seguradora se eximir ao pagamento, independentemente de a ingestão ter tido ou não consequências. “A simples presença de uma taxa superior a 0,50 gramas/litro não pode determinar a exclusão de responsabilidade da companhia de seguros”, diz a sentença do tribunal de Marco de Canavezes, “sob pena de tal conduzir a situações absurdas”. Como por exemplo alguém morrer vítima de uma doença prolongada sem qualquer nexo com o álcool, mas ver os seus herdeiros prejudicados pelo facto de ter bebido na altura em que morreu.
Porém, foi precisamente esta a interpretação legal que em Fevereiro passado assumiu o Tribunal da Relação do Porto. Perante um recurso apresentado pela Fidelidade, os magistrados invocaram jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça para decidirem que esta disposição se aplica mesmo a acidentes que não sejam causados por ingestão de bebidas alcoólicas. A partir do momento em que a pessoa tenha bebido acima do limite legal pode perder o direito à cobertura do seguro.
Tomás Ferreira, representante legal da viúva ironiza: se alguém estiver sentado a ler um livro enquanto bebe um ou dois copos de vinho sujeita-se a esse risco, caso sofra por exemplo um enfarte. Se for atropelado numa passadeira de peões também. O advogado oficioso – tratava-se de um casal de poucas posses, razão pela qual a mulher teve direito a apoio judiciário – já recorreu da decisão da Relação do Porto para o Supremo Tribunal de Justiça.
Uma médica da Fidelidade declarou em tribunal que o consumo diário de uma garrafa de vinho é considerado normal pela companhia, não conduzindo ao alcoolismo. Uma tese aceite pelos juízes do Porto, que defendem que José devia ter comunicado à seguradora que tinha passado a beber mais do que isso.