A saída à portuguesa de Theresa May
A decisão só ao Reino Unido compete. O que é preciso não é adiar. É escolher. Se não querem estar na sala apanhem lá o elevador e deixem-nos ir fazer coisas mais interessantes.
O “Brexit” pode ter muitos defeitos, mas tem neste momento duas grandes qualidades.
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O “Brexit” pode ter muitos defeitos, mas tem neste momento duas grandes qualidades.
A primeira é estimular a mente na busca de metáforas e analogias que descrevam aquilo que se está a passar. Pois bem, a partir de ontem o “Brexit” pode passar a ser descrito como uma “saída à portuguesa”. Uma saída à portuguesa é, por sua vez, exatamente o contrário de uma saída à francesa. Numa saída à francesa os convidados saem da festa sem avisar ninguém. Numa saída à portuguesa, os convidados passam a vida a dizer que vão ter de sair mais cedo, que não podem ficar para arrumar os pratos e as cadeiras, e a certa altura levantam-se e arrastam-nos para aquela terra-de-ninguém entre a porta do apartamento e elevador do prédio e ali ficam a despedir-se. E a despedir-se. E a despedir-se.
Mas depois lembram-se de mais uma coisa. E conversa puxa conversa. Mas é só mais esta vez. Carregam no botão do elevador. Respiramos de alívio, sem dar grandes mostras do mesmo, não vá o convidado ofender-se. E mal damos por isso o elevador desapareceu, chamado por alguém noutro piso, e o convidado continua ali a despedir-se. Agora chama de novo o elevador e para o não o deixar fugir abre-lhe a porta e fica a segurá-la à nossa frente. Mas não entra. Ou melhor, não sai. Continua a despedir-se. E assim será. Até ao fim dos tempos.
Temos vontade de lhe dizer: olha, ou entras para a sala para nos podermos sentar com as outras pessoas, ou metes-te nesse elevador e vais embora como disseste que querias. Mas não dizemos. Porque somos portugueses. E na casa dos outros fazemos o mesmo.
A segunda grande qualidade do “Brexit": é terapêutico para quem tenha bloqueios criativos ou se sinta culpado por falhar prazos para completar trabalhos ou projetos. Reparem: estamos perante um dos eventos de maior importância e de mais graves consequências na história europeia e mundial — pelo menos das últimas décadas — que era suposto ter ocorrido na semana passada.
Chegou a data do “Brexit”, e o “Brexit” foi adiado para de sexta-feira a oito dias. E agora que o parlamento britânico voltou a rejeitar o acordo de Theresa May para a saída da UE, e que rejeitou também (por duas vezes) todas as outras possíveis alternativas que apresentou a si mesmo, a solução encontrada pelo governo britânico foi… pedir um novo adiamento à UE. E mesmo para esse novo adiamento a legislação de saída, com acordo ou sem acordo, está longe de estar pronta.
Se uma das nações do mundo com a economia mais interdependente do exterior pode falhar prazos sucessivos com este à-vontade, porque não poderá fazer o mesmo o estudante atrasado com a entrega de um trabalho?
É certo que Theresa May afirma que este novo adiamento se destina a fazer aquilo que nunca quis fazer desde o início deste processo: falar com o líder da oposição, proceder a novos votos indicativos para averiguar as preferências do parlamento, e encontrar um acordo que permitisse ao Reino Unido sair da UE até 22 de maio.
Tendo em conta estes sinais, parece claro que Theresa May entende que o único acordo possível com a oposição e o resto do parlamento é aquele que deixa o Reino Unido como país-satélite da União Europeia, seja numa nova união aduaneira, seja numa versão semelhante à da relação que a UE tem com a Noruega, a Islândia e os outros países que na praticam aplicam as regras da UE sem nelas terem direito a voto. Se desse certo, tal cenário evitaria a disrupção de uma saída sem acordo.
E sendo esta uma solução sedutora para os interesses da UE, é possível que os chefes de estado e de governo concordem com o tal adiamento na próxima semana, prescindindo para isso da sua exigência de que o Reino Unido participe nas eleições para o Parlamento Europeu caso queira ficar na UE para lá de 12 de abril.
Mas isso seria um erro. Vejamos porquê.
Em primeiro lugar, porque significaria entrar numa armadilha, estendida em primeiro lugar a Jeremy Corbyn, líder da oposição: uma vez que ninguém gosta do atual acordo associado à primeira-ministra, que tal participar a meias num novo acordo de que ninguém gostará também?
Em segundo lugar, porque um adiamento após 12 de abril sem acordo aprovado ou sem garantias de participação nas eleições europeias se arriscaria a resultar num Parlamento Europeu impugnável (segundo os tratados e a Carta dos Direitos Fundamentais, nenhum estado-membro pode estar na UE sem representantes eleitos no PE) e na importação de uma crise constitucional britânica para dentro da UE. Não obrigado. Neste momento, aquilo de que devemos tratar é da saída do Reino Unido da União Europeia, e não da adesão da União Europeia ao caos do Reino Unido.
Em terceiro lugar: precisamente porque a União Europeia deve ajudar o Reino Unido a sair, é importante não dar a ilusão de que pretende que o Reino Unido fique na UE a todo o custo.
Como as coisas estão, o Reino Unido tem quatro opções: pode sair sem acordo a 12 de abril, pode sair com o acordo atual ou algo de semelhante a 22 de maio, pode pedir um adiamento mais longo para pensar no que quer fazer (desde que participe nas eleições europeias), e por último mantém o seu direito soberano de revogar o artigo 50. É escolha mais do que suficiente. A decisão só ao Reino Unido compete. O que é preciso não é adiar. É escolher. Se não querem estar na sala apanhem lá o elevador e deixem-nos ir fazer coisas mais interessantes.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico