Quem come as nossas migalhas digitais?

Ao fazer compras online ou a pôr um “like” no Facebook expomos a nossa identidade e privacidade a uma reserva gigantesca de dados. Sim, há aí um enorme potencial para a humanidade. Mas há também uma série de ameaças para as quais temos de estar atentos. Primeiro de uma série de dez textos sobre os riscos da “Revolução Digital”.

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LUSA/LIU XINGZHE/CHINAFILE

Vou com a minha filha ao cinema. Um pai sentado à nossa frente mexe no telefone, distraidamente, enquanto o filho de cinco anos tenta interagir. A sessão começa, pedem que desliguemos os telemóveis. Este pai continua ligado e durante os 45 minutos da sessão não levanta os olhos do pequenino ecrã, ignorando o muito grande lá ao fundo. Lê notícias sobre futebol, espreita o Facebook e o Instagram. Como qualquer outro vício, este dá muito dinheiro a ganhar e eu penso em quão valioso este pai é, provavelmente sem o saber.

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Vou com a minha filha ao cinema. Um pai sentado à nossa frente mexe no telefone, distraidamente, enquanto o filho de cinco anos tenta interagir. A sessão começa, pedem que desliguemos os telemóveis. Este pai continua ligado e durante os 45 minutos da sessão não levanta os olhos do pequenino ecrã, ignorando o muito grande lá ao fundo. Lê notícias sobre futebol, espreita o Facebook e o Instagram. Como qualquer outro vício, este dá muito dinheiro a ganhar e eu penso em quão valioso este pai é, provavelmente sem o saber.

Perto de 70% da população portuguesa tem acesso à Internet e muitos fazem-no através dos seus telemóveis. Estes “smartphones” ajudam-nos a acordar e a avisar os nossos filhos de que vamos chegar exactamente 17 minutos atrasados porque há um acidente a dois quilómetros. Contam quantos passos demos, percebem a nossa voz, guardam as fotos de família e lembram-nos para enviar um email de parabéns. Relógio, despertador, gravador, agenda, máquina fotográfica, mapa, banco, serviço de táxi, bloco de notas, tudo no meu bolso.

Isto é possível porque estes telefones pequeninos estão cheios de sensores e têm mais capacidade e memória do que as máquinas que nos levaram à Lua. Eles guardam milhões e milhões de “microdados” que são depois enviados para outros. Dados sobre os nossos passos e sobre o nosso comportamento, migalhas digitais que deixamos de cada vez que estamos online. É graças a estas migalhas, que partilhamos livremente, que o Google Maps me indica o trajecto mais rápido até casa. É também graças a elas que podemos começar a pensar em desenhar cidades mais inteligentes, mais eficientes, mais seguras.

São muitos os textos e programas que descrevem os benefícios e as promessas da chamada “Revolução Digital”. Mas há normalmente uma face negra nas revoluções e esta certamente não foge à regra. Se sistemas de reconhecimento facial podem permitir que cheguemos ao avião mais rapidamente, também facilitam o controlo de cidadãos. Se os cartões de pontos do supermercado nos fazem poupar no carrinho, também nos tornam mais susceptíveis à manipulação.

Infelizmente, este lado menos positivo é tipicamente menosprezado ou por vezes até ignorado pelos especialistas. São necessários escândalos de grandes proporções, como o da empresa Cambridge Analytica, acusada de utilizar o Facebook para influenciar eleições, para que os perigos da nossa actividade online sejam discutidos publicamente. Isto não é novo na história: não sabemos o futuro e tendemos a remediar mais do que a prevenir.

Pensemos, por exemplo, na Revolução Industrial. Seria dramático ter de regressar a um período sem telecomunicações, rede rápida de transportes, ou a produção mecanizada que temos hoje. Mas este crescimento trouxe também exploração do trabalho e poluição a níveis nunca antes imaginados. Este choque foi sendo atenuado através de legislação, mas foram precisas décadas e a morte de muitas crianças até aparecerem leis de regulação de trabalho infantil. E passaram quase dois séculos até este ser verdadeiramente proibido na Europa.

É interessante ler alguns dos argumentos contra esta legislação, dados na altura pelos donos das grandes empresas: os adultos não cabem nos túneis das minas; adaptar todas as máquinas da fábrica a mãos grandes levará o próprio país à falência; é a única forma de garantir que as crianças não morrem de fome. Quase 200 anos mais tarde, continuamos a ouvir argumentos de teor muito semelhante, mas agora dos grandes monopólios digitais, como a Apple, o Facebook ou a Google: fazemos mais bem que mal; comer estas migalhas sem pagar é a única forma de funcionar; é impossível sobreviver sem nós. É a resistência de empresas que conhecem múltiplos aspectos da nossa vida e que têm mais valor do que muitos países, sendo já verdadeiros líderes mundiais, não eleitos.

Os outros líderes, os políticos, também já perceberam o potencial da inteligência artificial (IA). Segundo Vladimir Putin: “A IA é o futuro, não só para a Rússia mas para toda a Humanidade (...). Quem se tornar líder nesta esfera, mandará no mundo”. A China espera ser esse líder antes de 2030, estando já a desenhar experiências sociais de larga escala, que envolvem classificar os cidadãos de acordo com o seu comportamento social, só possível graças a tecnologias de reconhecimento facial, vendidas em parte pela Microsoft. Não é por acaso que se ouvem tantas referências ao 1984 do Orwell, mas claro que há diferenças. Uma delas é que os mecanismos de vigilância são comprados por nós, que voluntariamente os levamos para todo o lado.

Isto significa que devemos desligar os nossos telefones, computadores e tablets? Certamente que não, até porque isso não nos garante protecção. Por exemplo, os dados que fornecemos na nossa página do Facebook são suficientes para ser possível extrapolar sobre os gostos e preferências de amigos que nem sequer fazem parte desta rede social. Mas, mais importante ainda, estas tecnologias e conhecimento resultam de um acumular de milénios de evolução humana e, tal como as trazidas pela Revolução Industrial, podem e devem ser usadas para melhorar as nossas vidas. Mas vai ser preciso tomar decisões difíceis e precisamos de estar informados, se queremos fazer as escolhas certas.

Ao longo das próximas semanas iremos descrever e discutir alguns dos possíveis lados negros desta revolução. Começamos por explicar os chamados sistemas de recomendação (ou para que servem os pontos do supermercado) e discutir como a legislação actual (não) nos protege. Nas semanas seguintes vamos perceber se devemos ou não tapar a câmara do telefone, os riscos das apps de saúde e como identificar fake news. Contamos oferecer informação e indicações práticas, mas também abordar questões de princípio e valores que nos ajudem a pensar no mundo não como existe hoje, mas como gostaríamos que viesse a ser. Porque o futuro se decide agora.

Esta série, às segundas-feiras, está a cargo do grupo de investigação em Data Science and Policy, da School of Business and Economics da Universidade Nova de Lisboa (http://scienceandpolicy.eu)

Na próxima segunda-feira: “Diz-me o que fazes, dir-te-ei quem és"