Aquele Verão não terminou, é um sonho que continua
Aurora, o terceiro álbum dos Sensible Soccers, troca a viagem por estradas secundárias do interior pelo Verão eterno da adolescência, imaginário povoado por mega-discotecas e um Algarve mítico. Uma fantasia que continua a renovar-se
O som parece conduzir-nos para um lugar específico que, ainda assim, escapa à identificação. Aqueles sintetizadores que se derramam, dolentes, sobre percussões solares, aquelas flautas sintéticas que sopram “anos 1980” por todo o lado, aquela caixa-de-ritmo bem balançada em pianada house que sobrevoa graciosamente o caldeirão de azeite perigosamente próximo. Tudo isso são sons em que se pressente um lugar, tudo isto é a música dos Sensible Soccers, banda que dá música e textura a memórias sentimentais e lugares que a memória reconhece mas perante a qual a passagem do tempo exerceu o seu efeito.
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O som parece conduzir-nos para um lugar específico que, ainda assim, escapa à identificação. Aqueles sintetizadores que se derramam, dolentes, sobre percussões solares, aquelas flautas sintéticas que sopram “anos 1980” por todo o lado, aquela caixa-de-ritmo bem balançada em pianada house que sobrevoa graciosamente o caldeirão de azeite perigosamente próximo. Tudo isso são sons em que se pressente um lugar, tudo isto é a música dos Sensible Soccers, banda que dá música e textura a memórias sentimentais e lugares que a memória reconhece mas perante a qual a passagem do tempo exerceu o seu efeito.
Ou seja, são traços esbatidos sobre os quais a banda de 8, o primeiro álbum, editado em 2014, e Villa Soledade, de 2016, constrói arquitectura sónica bem definida na sua evanescência. Aurora, o novo disco, aplica os mesmos métodos, de eficácia comprovada e prazer garantido para quem ouve deste lado, a outras memórias – estamos num Verão dos anos 1990 a sonhar com um Algarve mítico que o mais certo é nunca ter existido.
“É uma banda bastante nostálgica. Trabalha muito a nostalgia e a retromania e é necessário um conjunto de referências bastante exóticas para que consigas ter o cartão de sócio de Sensible Soccers”, diz André Simão ao Ípsilon. Baixista barcelense que conhecemos dos Astonishing Urbana Fall ou dos Dear Telephone e que acompanha Duquesa ou White Haus, Simão tornou-se membro oficial dos Sensible Soccers depois da saída do guitarrista Filipe Azevedo, no final de 2017. A relação com a banda, que se completa com Hugo Gomes e Manuel Justo e que, em Aurora, teve contribuição decisiva de Jorge Carvalho (percussões), Sérgio Freitas (sintetizadores, teclados) e de B Fachada na posição de produtor, já é bem antiga. “Estive virtualmente em todas as posições em que alguém pode estar em relação à banda”, explica. Foi fã céptico, tornou-se fã conquistado depois do primeiro concerto, participou nos dois primeiros discos enquanto baterista, tornou-se pelo meio membro da banda nas apresentações ao vivo. “Estive em todo o lado possível. Fora, dentro, amigo, colaborador, nos discos e nos concertos. Agora, só me falta sair”, sorri.
Antes de participar no processo de composição e gravação de Aurora, que passou pela casa do Fornelo, na freguesia de Vila do Conde, que foi sede da banda desde o início, pela sala de ensaios que Simão tem em Barcelinhos, e por uma residência na Casa do Soto, em Arouca, André Simão já sabia de que matéria é feita esta banda. Inclui-se nela a circunstância de “ser de uma cidade pequena e de ter tido uma vida de Norte” – a geografia dos Sensible Soccers passa por São João da Madeira, Vila do Conde ou Barcelos - e a já referida tendência para a nostalgia. Há “desde logo”, destaca André Simão, “referências que não são sequer da música, que são quase existenciais”: “as memórias das férias no litoral, o vento e o frio do norte, os lugares que frequentávamos antes de nos conhecermos, quando éramos miúdos, os desenhos animados, as canções da rádio”. Junte-se a isto, e agora falamos de música, “uma costela forte que nos une à volta das músicas do mundo, cada um com as suas geografias, e o gosto pela electrónica e pela música instrumental”.
Aquela é a tela sobre a qual, a cada novo registo, os Sensible Soccers pintam - as cores e o ataque das pinceladas tratam de assegurar que nenhum quadro novo será igual ao anterior. A analogia pode parecer forçada, e sê-lo-á, mas usamos em nossa defesa o facto de Aurora arrancar com Como quem pinta e se despedir com Telas na areia, títulos que, como a banda constatou à posteriori, depois de ler uma crítica ao álbum na publicação online britânica Clash, casam particularmente bem: “Como quem pinta telas na areia”. Ora então, os Sensible Soccers de Aurora - álbum que, depois apresentação na Póvoa de Varzim, passará nos próximos tempos pelo Douro Mercado Criativo, em Vila Real (30 de Março), pela Culturgest, em Lisboa (3 de Abril), pelo Salão Brazil, em Coimbra (12 de Abril), e pelo gnration, em Braga (27 de Abril).
Começamos na viagem onírica de Como quem pinta, dolência exuberante, Verão laranja pintado a trinado de lamelofone de origem incerta, que ganhará corpo em palmas bem medidas e flautas ambientais. Teremos festa de Verão de olhos nas estrelas quando Farra lenta se torna passo na pista de dança, uns 80s psicadelizados em Chavitas, tropicalismo minimalista em Bichos do Soto e, na despedida de Telas na areia, o genérico perfeito para resumir o filme que é o disco.
O processo de criação de Aurora começou pela resposta a uma pergunta: se, com a alteração da banda, com ela assente num novo trio (Hugo Gomes, Manuel Justo e André Simão), a música resultante “encaixava ainda na matriz”? Resposta positiva encontrada – os Sensible Soccers continuavam a soar a Sensible Soccers -, entregaram-se à criação “de forma bastante temerária, sem medo de ir para qualquer lado”. Em Barcelos e, posteriormente, na residência em Arouca, já com Sérgio Freitas e Jorge Carvalho, procuraram a ordem entre o material acumulado. Com B Fachada a produzir, “verdadeiro animal de estúdio” e “muito útil e muito presente no disco” (toca sintetizador modular em três canções), para o qual contribuiu com o seu “’know-how em termos técnicos e um discurso muito límpido quanto ao entendimento da música”, os Sensible Soccers foram definindo o espaço simbólico de Aurora.
Depois das estradas secundárias de pouco tráfego e pintalgadas do edificado curioso de quem teve pequenos sonhos de grandeza, o tempo do Verão eterno da primeira juventude, esse de dias longos e despreocupados, com imaginário povoado de mega-discotecas e suas festas da espuma – uma delas, Luziamar, na praia do Cabedelo, em Viana do Castelo, dá título a uma canção – e de quimeras distantes – “para alguém que é do Norte e que cresceu cá, o Algarve não era só uma região, era uma promessa de paraíso de Verão, um sítio mítico”.
Os Sensible Soccers erguem essas memórias com matéria do presente, num jogo constante entre o que nunca foi (e está lá atrás) e o que já foi (mas está aqui agora). Fenómeno de refracção nasceu de madrugada, quando uma recordação esfacelou uma canção que já tinham preparada, e que foi então destruída para dar espaço ao célebre relato da onda gigante algarvia que nunca existiu, mas cuja notícia correu o país em 1999. “Esse é um relato real, com uma memória real, outras vezes são conexões imaginárias”, explica André Simão, exemplificando com o caso da supracitada Luziamar. “Soava-nos a qualquer real, mas não sabíamos o que era, e quase sentimos necessidade de ir ao mapa procurar o melhor sítio para a depositar”. A discoteca Luziamar, hoje em destroços, foi esse sítio que a canção passou a conter. “Numa banda que utiliza muito pouco a voz, o conteúdo lírico surge de uma forma ainda mais livre e com associações ainda mais inusitadas. E se há um território que se fecha porque a mensagem é mais vaga, há outro que se abre”.
É vasto esse território que nos abre a Aurora dos Sensible Soccers. Lá atrás, o Verão que ainda não acabou. E nós hoje, ainda mergulhados nele.