Xi no Eliseu: muitos sorrisos e muitos negócios

A visita de Xi à Europa é bem a imagem do nervosismo e da desorientação que grassa entre os grandes países europeus.

1. Há já alguns anos, num artigo publicado pelo Washington Post, Henry Kissinger avisava que, se havia um problema internacional de primeiríssima importância que exigia um entendimento entre os EUA e a Europa, ele chamava-se China. Kissinger conhece tudo da China. Foi ele que conduziu a mudança estratégica americana que levou Nixon a Pequim, em 1972, alterando o quadro da competição estratégica entre os EUA e a União Soviética. A visão que lhe é própria, e que tem a marca da “realpolitik”, parte da ideia de que exigir à China o caminho da democracia ocidental é uma impossibilidade e uma perda de tempo. É conhecido o choque de visões entre Kissinger e outro grande conhecedor da China, diplomata, político e intelectual, o britânico Chris Patten, mais intransigente perante a falta de respeito de Pequim pelos Direitos Humanos e mais crítico da tolerância ocidental para com o regime chinês. É sua a célebre frase: “Um golpe de cassetete na cabeça de um chinês dói o mesmo que na cabeça de um europeu.” 

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1. Há já alguns anos, num artigo publicado pelo Washington Post, Henry Kissinger avisava que, se havia um problema internacional de primeiríssima importância que exigia um entendimento entre os EUA e a Europa, ele chamava-se China. Kissinger conhece tudo da China. Foi ele que conduziu a mudança estratégica americana que levou Nixon a Pequim, em 1972, alterando o quadro da competição estratégica entre os EUA e a União Soviética. A visão que lhe é própria, e que tem a marca da “realpolitik”, parte da ideia de que exigir à China o caminho da democracia ocidental é uma impossibilidade e uma perda de tempo. É conhecido o choque de visões entre Kissinger e outro grande conhecedor da China, diplomata, político e intelectual, o britânico Chris Patten, mais intransigente perante a falta de respeito de Pequim pelos Direitos Humanos e mais crítico da tolerância ocidental para com o regime chinês. É sua a célebre frase: “Um golpe de cassetete na cabeça de um chinês dói o mesmo que na cabeça de um europeu.” 

A verdade é que hoje a visão de Kissinger vingou, mas não o seu conselho às democracias ocidentais. A Europa e os Estados Unidos competem entre si, tentando tirar vantagens das fraquezas do outro – e toda a gente sabe quem, nesta relação, é o mais forte. A Europa está profundamente dividida sobre a melhor forma de lidar com a grande potência asiática com pretensões à hegemonia mundial, que a China já não o esconde sob a capa do slogan tranquilizador do “peaceful rising”, inventado por Deng nos anos 1980. Xi Jinping tem dois grandes objectivos já indisfarçáveis: concentrar cada vez mais o poder nas suas próprias mãos, numa versão moderna de Mao; transformar a China na maior economia do mundo e, consequentemente, numa superpotência mundial, até 2049, quando passam 100 anos sobre a conquista do poder pelo PCC. Como dizem os mais entendidos, muita coisa pode ainda correr mal neste regresso do Império do Meio. Quanto maior é a ambição e o poder, maiores são os riscos e as dificuldades. Mas é esse o desígnio e seria ele que deveria servir de ponto de partida para uma estratégia ocidental e europeia. Que não há.

2. Obama escolheu o “containment”: cooperar e conter. Hillary Clinton, secretária de Estado do seu primeiro mandato, percorreu as capitais dos pequenos e médios aliados americanos que rodeiam a China para renovar as garantias de segurança e prometer que os EUA não deixariam de ser uma potência asiática. Para a anterior Administração, o grande desafio estratégico dos EUA no século XXI seria a ascensão da China. A nova Parceria Trans-Pacífica de Comércio que Obama negociou com 11 países da Ásia Oriental, menos a China, foi rasgada por Donald Trump, abrindo as portas a Pequim para tentar ocupar o lugar central nesta parceria. A nova Administração escolheu o caminho oposto, anunciando uma “guerra comercial” com Pequim cujo desfecho está a ser negociado na capital chinesa, utilizando a ainda colossal capacidade económica norte-americana. Uma “guerra” aberta teria, para a economia chinesa, um custo porventura muito superior ao que sofreria a economia americana, porque a primeira está muito mais dependente do gigantesco mercado dos EUA para as suas exportações, do que os EUA estão dependentes do que vendem para o mercado chinês.

Nesta guerra, quem corre o maior risco é, justamente, a Europa, porque Washington pode conseguir concessões ou oferecer benefícios que excluam os europeus. Talvez esteja também aqui a explicação para o nervosismo e a desorientação que grassa entre os grandes países europeus sobre qual deve ser a melhor estratégia para lidar com a China. A visita de Xi à Europa, que começou em Roma e terminou em Paris e que incluiu um encontro com Macron, Merkel e Juncker no Eliseu – pleno de champanhe, sorrisos e palmadinhas nas costas – é bem a imagem dessa desorientação ou, no mínimo, da incapacidade para encontrar uma abordagem europeia que não seja apenas o somatório dos interesses de Berlim e de Paris, abrindo o espaço aos países mais pequenos para tentar singrar com as “armas” que têm.

3. Há alguns anos, o padrão das relações de cada país europeu com a China era relativamente simples. As visitas da chanceler a Pequim traduziam-se num volume de negócios verdadeiramente impressionante. A Alemanha representava 40% das trocas comerciais com a China. Mas os Presidentes franceses também assinavam contratos milionários para vender Airbus ou centrais nucleares, enquanto o Reino Unido, a economia europeia mais aberta ao investimento estrangeiro, já atraía um volume significativo de capital chinês. Os sinais, mesmo que discretos, de alguma abertura política em Pequim durante a década de Hu Jintao alimentavam a velha esperança de que o enriquecimento traria com ele algumas reformas políticas. O massacre de Tiananmen (4 de Junho de 1989) começava a cair no esquecimento, embora continue em vigor a proibição de vender à China qualquer tecnologia de ponta utilizável no domínio militar. O Tibete servia para Pequim “castigar” os líderes europeus que ousassem contestar a sua política de repressão – ainda que uns, mais do que outros. Merkel podia dar-se ao luxo de receber o Dalai Lama sem retaliação de Pequim; os líderes franceses ou britânicos teriam de ter maior cuidado. Mas, progressivamente, os Direitos Humanos deixaram de figurar na agenda dos encontros ao mais alto nível. Kissinger impunha-se a Patten.

Entretanto, a preocupação de Berlim e de Paris passou a ser outra, como é outra hoje a estratégia de Pequim. A economia chinesa subiu rapidamente na cadeia de valor, deixando de ser apenas a fábrica do mundo. Hoje, para além de bens cada vez mais sofisticados, exporta capitais, enquanto subcontrata às economias emergentes que a rodeiam, do Vietname à Tailândia ou às Filipinas. A estratégia continua a ser de expansão “pacífica” da sua influência no mundo, ainda que um pouco menos, quando se trata dos seus vizinhos asiáticos ou do Mar do Sul da China. O nome da coisa passou a ser “Road and Belt Initiative” ou, como também se diz, a “Nova Rota da Seda” – desenhada para a construção de um gigantesco bloco euroasiático com epicentro em Pequim.

4. O Financial Times escrevia em editorial, a propósito da visita de Xi a Roma e Paris, que “muito pouco se conseguirá enquanto os membros [da União] colocarem os seus próprios interesses em primeiro lugar”. O título do editorial era: “A União Europeia tem de mostrar unidade nas suas relações com a China.” O jornal lembrava também o contraste entre a linguagem e a realidade. A Europa acaba de decretar que a China já não é apenas um “parceiro estratégico” mas um “rival sistémico que promove modelos de governação alternativos” e um “concorrente económico na conquista da liderança tecnológica”. Esta é a parte da linguagem. O desafio é novo: “Nunca antes a UE teve de gerir as suas relações com um país com o qual os negócios são fundamentais, mas cujos valores e o comportamento subvertem a ordem internacional assente na lei, da qual a Europa é, ela própria, um pilar.” Os europeus não desconhecem que a China recorre à velha táctica de dividir para reinar, colocando-os uns contra os outros. Sabem que as suas próprias aspirações a uma maior autonomia estratégica não impedem que, durante um futuro previsível, continuem a depender do aliado americano para garantir a sua segurança. Não conseguem vencer a armadilha das suas próprias divisões.

Também não servirá de nada à Europa deixar que os Direitos Humanos sejam os primeiros a “tombar em combate” na sua relação com a China e com a sua forma de “governação alternativa”. Porque os Direitos Humanos e a democracia continuam a ser o mais poderoso soft power do mundo ocidental e a última fronteira para resistir a uma nova ordem internacional onde apenas conta o argumento da força. Talvez valesse a pena não pôr já de lado o idealismo de Patten, mesmo levando em consideração o realismo de Kissinger.