Há um novo moliceiro na Ria, acendendo a esperança no futuro

Este domingo, a Murtosa assiste a uma cerimónia especial, cada vez mais rara nos dias de hoje. O Presidente é lançado à água, trazendo à tona a expectativa de que as embarcações tradicionais da ria, em especial os moliceiros, entrem num novo ciclo de revitalização.

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O ritual é relativamente simples, mas carregado de simbolismo: parte-se a garrafa de espumante na proa e lança-se o barco à água, ao som do aplauso da assistência. Este domingo, aplaude-se O Presidente, o mais novo elemento da frota de barcos moliceiros que navegam na ria de Aveiro. Noutros tempos, seria apenas mais uma entre várias cerimónias de “bota-abaixo” ao longo de um ano. Neste domingo, tem honras de destaque e não é por causa do nome que o barco exibe no casco e no registo – que pretende homenagear Marcelo Rebelo de Sousa, destacam os seus proprietários. O Presidente protagoniza um momento já não tão comum assim. Mais do que isso: simboliza a esperança num futuro que garanta longa vida aos barcos tradicionais aveirenses.

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O ritual é relativamente simples, mas carregado de simbolismo: parte-se a garrafa de espumante na proa e lança-se o barco à água, ao som do aplauso da assistência. Este domingo, aplaude-se O Presidente, o mais novo elemento da frota de barcos moliceiros que navegam na ria de Aveiro. Noutros tempos, seria apenas mais uma entre várias cerimónias de “bota-abaixo” ao longo de um ano. Neste domingo, tem honras de destaque e não é por causa do nome que o barco exibe no casco e no registo – que pretende homenagear Marcelo Rebelo de Sousa, destacam os seus proprietários. O Presidente protagoniza um momento já não tão comum assim. Mais do que isso: simboliza a esperança num futuro que garanta longa vida aos barcos tradicionais aveirenses.

“Chegaram a existir registados cerca de 1.356 barcos na laguna, dedicados à apanha do moliço (fertilizante natural), mas este número é reduzido de uma forma galopante para apenas 10 barcos em 2018, estes conservados no coração da ria muito à custa da teimosia dos seus arrais”. O reparo é feito por Ricardo Cardoso e Verónica Fonseca, proprietários do mais novo elemento da família dos moliceiros – lançado à água pelas 14h00, no Cais do Bico, na Murtosa.

Depois de andarem algum tempo a trabalhar com dois moliceiros “de amigos” e uma bateira própria, os empresários entenderam que tinha chegado o momento de comprarem o “seu” moliceiro. Um que respeitasse a “forma tradicional” e preparado para “navegar à vela”, no “coração da laguna” aveirense, vincam os responsáveis da empresa Terra d’água, distinguindo, assim, aquilo que é a oferta apresentada aos turistas no centro de Aveiro da navegação e manutenção de moliceiros que é feita no coração da ria.

A arte da construção e das pinturas

A construção d’O Presidente esteve a cargo de António Esteves, verdadeiro mestre da construção naval e a pintura dos painéis coube a José Oliveira, artista plástico murtoseiro, autor da quase totalidade dos painéis dos moliceiros existentes na ria. Pintados à mão, e inspirados nos mais variados motivos (religião, trabalho ou até de natureza erótica), estes painéis são uma imagem de marca do barco tradicional aveirense.

Dar forma (e também colorido) a um barco moliceiro é, sem sombra de dúvida, uma arte. António Esteves faz de manter o processo o mais tradicional possível. “Eu é que escolho a madeira para o barco, muitas vezes vou aos pinhais ver os pinheiros”, assegura. Começou a “aprender a arte” aos 10 anos. “Já tenho 67 anos de trabalho, à volta dos barcos”, relata, sem acusar qualquer cansaço. Pelo contrário, diz-se “viciado” na construção naval e, enquanto “a saúde permitir”, do seu estaleiro, situado em Pardilhó (Estarreja), continuarão a sair barcos.

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As empresas turísticas são os principais clientes – está prestes a dedicar-se à encomenda de um mercantel - mas também se orgulha de ter construído “uma boa parte” dos barcos que estão em exposição na sala de embarcações tradicionais do Museu Marítimo de Ílhavo.

Nos tempos que correm, constrói “uns dois ou três barcos por ano”. Mas, em 1986, por exemplo, fez “sete barcos”. Era outra época, havia mais encomendas e, mais importante do que isso, “havia malta a querer trabalhar na arte”. “Chegámos a ser três aqui no estaleiro”, recorda, a propósito de um passado não tão longínquo assim. “A rapaziada de agora não quer vir aprender. Isto leva tempo e é preciso suar”, nota o mestre António Esteves, deixando o alerta: “a arte pode vir a desaparecer”.

Seis construtores em toda a ria

Etelvina Almeida, especialista em embarcações tradicionais da ria, garante que o cenário traçado pelo construtor naval de Pardilhó não é, de todo, exagerado. “A actividade da construção naval tradicional encontra-se em fase de decadência em todos os concelhos da região lagunar”, aponta. Restam apenas seis construtores, grande parte dos quais no concelho de Estarreja, em Pardilhó. É lá que trabalham três mestres construtores, “portadores de uma escola de saber ancestral, mas sem seguidores”, repara a investigadora. No município da Murtosa, mais concretamente na Torreira, vão trabalhando “dois construtores mais recentes, com uma aprendizagem mais de saber fazer, gerada pela experiência”, especifica Etelvina Almeida, apontando, ainda, a existência, “a sul, mais concretamente na Gafanha do Carmo, de um construtor que ainda trabalha em madeira”.

A investigadora – que decidiu, há um ano, comprar e recuperar uma bateira tradicional - teme que “morrendo o homem, morrerá o saber fazer, a arte da construção naval que tanta fama deu à região”, uma vez que “os mestres construtores do passado deixaram um legado nas mãos dos actuais construtores, mas estes não têm a quem o passar”. “Perder-se-á este património imaterial irremediavelmente se não se actuar nesse sentido”, alerta.

O quadro actual só não é ainda mais negro por causa do incremento da actividade marítimo-turística dos últimos anos, que motivou o aparecimento de “solicitações de trabalhos de recuperação, reconstrução e construção de novas embarcações turísticas”. Empreitadas que “deram alento a estes construtores, aumentando a sua laboração e permitindo manter os estaleiros a funcionar”, realça a especialista em embarcações tradicionais da ria.

A manter-se esta aposta no sector marítimo-turístico Etelvina Almeida acredita que “os estaleiros manter-se-ão a funcionar”. “Resta saber incentivar os mais jovens, iniciando-os na actividade”, argumenta, fazendo eco daquilo que defendeu num recente artigo para a revista “Terras de Antuã”.

As duas faces da mesma moeda, chamada turismo

Se é verdade que tem sido o turismo o grande responsável pela preservação das embarcações tradicionais da ria, também é um facto que tem sido por causa desta actividade que vão aparecendo alguns exemplares descaracterizados. Especialmente, nos canais urbanos da ria – ou seja, no centro da cidade de Aveiro, onde se concentra a maior oferta de passeios de barco. Cortaram-lhes as proas (para poderem passar debaixo das pontes) e, como navegam sempre a motor, também não têm mastro.

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António Esteves

A questão não se coloca relativamente aos barcos que operam para além das comportas, como será o caso do novo O Presidente. “Sempre que possível navegamos à vela, em pleno coração da ria”, destaca Ricardo Cardoso, da empresa Terra d’Água. Há outros operadores a apostar nestes passeios de barco tradicionais fora da área urbana (a ria tem quase 50 quilómetros de extensão), mas não será arriscado afirmar que grande parte dos turistas acabam por cumprir um passeio no centro da cidade.

Perante esta realidade, Etelvina Almeida considera que “seria pertinente a existência de um barco moliceiro, com aparelho vélico, apetrechos e utensílios de trabalho, exposto no canal central da cidade de Aveiro”. Desta forma, dava-se “a conhecer o barco moliceiro tradicional, na sua forma, decoração, função e processo construtivo”, argumenta.

A investigadora atreve-se a lançar uma outra sugestão: “cada operador marítimo-turístico, possuir um barco moliceiro preparado para navegar à vela em dia de regata, o que aumentaria o número de barcos participantes e geraria um maior impacto do evento”. Na sua perspectiva, as regatas têm um peso muito grande na dinamização dos barcos tradicionais, razão pela qual devem continuar a ser uma aposta das entidades locais. “Seria pertinente aumentar os prémios de participação nas regatas e subsidiar os proprietários que efectuassem a manutenção da embarcação para o efeito”, acrescenta.

A batalha em defesa do barco moliceiro deve passar, ainda, apresentar por “uma candidatura a Património Imaterial Nacional, como forma de o valorizar e imortalizar”, sustenta a especialista. Não menos importante seria apostar na criação de uma associação que defendesse “a preservação do barco moliceiro” e que prestasse “apoio, tanto na esfera particular como na empresarial”, remata.

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