O génio de Charles Ives

Só muito de quando em quando há momentos assim, concertos que desde logo temos a certeza segura de que não mais se esquecerão.

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Charles Ives dr

Quando da abertura do eixo temático da Casa da Música neste 2019, “Dar novos mundos ao mundo”, isto é, as Américas, houve ocasião para escrever que, se tudo corresse bem, o acontecimento maior do ano musical seria a estreia em Portugal da absolutamente espantosa Sinfonia n.º 4 de Charles Ives. E, de facto, que fabuloso, memorável, foi este concerto, dos máximos que já foi possível desfrutar na instituição portuense.

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Quando da abertura do eixo temático da Casa da Música neste 2019, “Dar novos mundos ao mundo”, isto é, as Américas, houve ocasião para escrever que, se tudo corresse bem, o acontecimento maior do ano musical seria a estreia em Portugal da absolutamente espantosa Sinfonia n.º 4 de Charles Ives. E, de facto, que fabuloso, memorável, foi este concerto, dos máximos que já foi possível desfrutar na instituição portuense.

Houve então a dita Sinfonia nº 4 de Ives, mas antes de entrar nos pormenores dessa, há a dizer que é raro, muito raro mesmo, um concerto ter um programa tão exemplar.

É difícil, talvez mesmo impossível, supor uma melhor primeira obra para o programa que a superlativamente admirável The Unanswered Question, uma das mais sublimes peças de Charles Ives, com a trompete sozinha em palco, duas flautas atrás do público e as cordas fora de cena, e isto por três razões: 1) Desde logo porque esse dispositivo e o discurso musical daí decorrente são uma magnífica introdução a um concerto; 2) Porque esse solo de trompete é explicitamente citado em My Father Knew Charles Ives — uma das melhores obras de John Adams, de resto — e, por essa explicita citação, e pelo intuito de homenagem ao “pai fundador” do novo continente musical norte-americano por parte de um autor contemporâneo que plenamente se justifica, não se imagina melhor sucessão num programa que a destas duas obras; 3) E porque The Unanswered Question patenteia exemplarmente a questão da espacialização que depois é também capital na Sinfonia nº 4.

Politonalidades, polirritmias, espacialidade — o que é que este homem (que, recorde-se, era músico amador, a sua ocupação sendo de negócios) não inventou?!

A Sinfonia nº4 exige piano solo, coro nos primeiro e quarto andamentos, e uma imensa orquestra com alguns conjuntos distintivos, obrigando mesmo a que no seio do enorme conjunto instrumental haja dois maestros assistentes, que foram Raquel Couto e Cláudio Ferreira, para dirigirem esses grupos restritos, além de uma percussão reforçadíssima, que no último andamento se desloca mesmo para outro espaço, o camarote lateral no caso.

Foi uma interpretação febril, contagiante, exaltada e exaltante.

Só muito de quando em quando há momentos assim, concertos que desde logo temos a certeza segura de que não mais se esquecerão.

E foi sem dúvida um dos máximos momentos já vividos na Casa da Música nestes 14 anos de actividade.

Por isso se impõe que fique devidamente registado como um concerto memorável, ímpar celebração do génio de Charles Ives!