Bolsonaro tenta reescrever a História da Ditadura Militar
O Presidente brasileiro quer transformar o golpe na “revolução democrática de 1964”. A comemoração de amanhã será minimalista, a pedido dos próprios militares. Sentencia um colunista: “Reescrever a história é um item previsível no manual dos candidatos a autocratas”. Faz lembrar Orwell.
A História da ditadura militar brasileira é um campo de batalha e tem neste domingo a comemoração dos 55 anos do golpe militar de 31 de Março de 1964, que marca o início da Ditadura. Por recomendação da “cúpula militar”, as cerimónias serão discretas e limitadas aos quartéis para não agravar o clima de “tensão política”. No quartel-general do Exército, em Brasília, um coronel fará uma palestra sobre a “revolução democrática de 1964”.
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A História da ditadura militar brasileira é um campo de batalha e tem neste domingo a comemoração dos 55 anos do golpe militar de 31 de Março de 1964, que marca o início da Ditadura. Por recomendação da “cúpula militar”, as cerimónias serão discretas e limitadas aos quartéis para não agravar o clima de “tensão política”. No quartel-general do Exército, em Brasília, um coronel fará uma palestra sobre a “revolução democrática de 1964”.
O Ministério Público Federal condena a iniciativa: “É incompatível com o Estado Democrático de Direito festejar um golpe de Estado e um regime que adoptou políticas de violações sistemáticas aos direitos humanos e cometeu crimes internacionais.” Haverá domingo marchas de protesto em várias cidades.
Declarou o porta-voz de Bolsonaro: “O Presidente não considera o 31 de Março de 1964 um golpe militar” mas uma acção “para recolocar o nosso país no rumo”. O vice-presidente, general Hamilton Mourão, propôs uma nova definição para a ditadura: “Eu prefiro chamar governo de presidentes militares”.
Responde Helio Gurovitz, colunista do Globo: “Reescrever a história é um item previsível no manual dos candidatos a autocratas. O exemplo canônico é Estaline, que mandava apagar os adversários que matava das fotografias. Estaline foi a inspiração do escritor britânico George Orwell [no livro] 1984. Está nele a origem do termo ‘orwelliano’ para qualificar as tentativas de disseminar a mentira oficial como verdade. (…) Ao afirmar que o presidente Bolsonaro não considera que tenha havido um “golpe militar” no Brasil em 1964, o porta-voz da Presidência abriu esse flanco. (…) É inadmissível tentar mudar os factos por meio de palavras e expressões que tentem atenuar o arbítrio.”
O balanço da ditadura não pode ser apagado: 434 pessoas foram mortas ou desapareceram às mãos do Estado. Houve tortura, censura, encerramento do Congresso, cassação de políticos e suspensão do habeas corpus.
Golpe civil-militar
Não é objectivo deste texto historiar o golpe e, muito menos, as etapas da ditadura. Limito-me a chamar a atenção para dois ou três pontos que pesam na batalha da memória.
O golpe de 1964 não pode ser narrado a preto e branco. Explica o historiador Carlos Fico: “Se entendermos o golpe apenas como o episódio que iniciou uma ditadura brutal, correremos o risco de construir leitura romantizada, segundo a qual a sociedade foi vítima de militares desarvorados. Quando a historiografia mais ousada se contrapõe a essa leitura vitimizadora, ela não está propondo um ‘revisionismo reaccionário’ que buscaria eximir de culpa os golpistas. Apenas se trata de algo óbvio: não há fatos históricos simples.”
O golpe de 1964 é “evento-chave da história do Brasil recente, em que parcelas significativas da sociedade brasileira aceitaram uma solução autoritária para os problemas que afligiam o país”. Conclui Fico: “Entender porque uma solução autoritária foi de algum modo aceita naquele momento pode servir para exorcizarmos a sociedade brasileira do autoritarismo que tantas vezes vitimou a história de nossa República.”
O primeiro grande traço consiste na participação activa da elite política, do mundo empresarial ou da Igreja Católica no golpe que derrubou o Presidente João Goulart. Sublinha o historiador Daniel Aarão Reis: “O golpe foi efectivamente dado (e não apenas apoiado) por civis e militares e, portanto, é possível chamá‐lo de civil‐militar.” Na conspiração participaram os governadores dos três mais importante estados: São Paulo, com Ademar de Barros, Guanabara, com Carlos Lacerda, e Minas Gerais, com Magalhães Pinto. Aprovaram o golpe democratas como o ex-Presidente Juscelino Kubitschek ou Ulysses Guimarães, futuro “pai da Constituição” de 1988.
Consumado o golpe militar, o Congresso, a instituição que deveria zelar pela legalidade republicana, declara, logo a 2 de Abril, a vacância do poder. O mesmo Congresso aprovará o Acto Institucional Número Um e, a 11, elegerá o general Castello Branco como Presidente.
É nesta natureza civil-militar do golpe que o Exército tentará futuramente basear o seu “revisionismo”.
Os militares tomam o poder
Seguem-se duas surpresas, escreveu o historiador Murilo de Carvalho. A esquerda, que sonhava estar na ofensiva através da campanha pelas reformas, sofreu um choque: como foi possível uma vitória tão fácil da direita? Onde estavam o movimento popular e os “generais do povo”?
“A segunda surpresa veio um pouco depois, quando começaram a ser publicados os actos institucionais, contendo demissões e cassações de direitos políticos, e quando o general Castelo Branco assumiu o governo. Os dois lados admitiam envolvimento militar num eventual golpe, mas ao estilo cirúrgico das intervenções de 1945, 1954, 1955 e 1961, dirigidas para a derrubada do presidente, seguida da devolução do poder aos civis. Nenhum dos lados previa um golpe liderado e controlado por militares, seguido de um governo militar.”
Explicou o historiador americano Alfred Stepan que “coube à Escola Superior de Guerra (ESG) mudar a mentalidade [dos militares] no sentido de legitimar entre as tropas e, mais tarde, também entre as elites da sociedade civil, não apenas as acções de deposição de um governo como, e principalmente, a tomada do poder pelos militares e a sua permanência no governo.” A elite da ESG, dita “Sorbonne”, apostava na incapacidade das elites políticas civis e tinha um projecto para o Brasil.
A novidade é que não surge um general ditador. Quem assume directamente o poder são as Forças Armadas e em particular o Exército. O Acto Institucional Número Um era claro: “A revolução vitoriosa se investe no exercício do poder constituinte [e] se legitima por si mesma.”
A repressão e a tortura começam logo a seguir ao golpe, muito antes das guerrilhas urbanas. A ditadura atinge o paroxismo com o Acto Institucional Número Cinco, de 13 de Dezembro de 1968, promulgado pelo Presidente Costa e Silva. Resume Fico: “O Congresso Nacional foi fechado. Na mesma noite do decreto, o ex-presidente Juscelino Kubitschek foi preso. No dia seguinte, foi o ex-governador Carlos Lacerda, e começaram as cassações de deputados federais e senadores. Até 1969, um total de 333 políticos tiveram seus direitos políticos suspensos. Foi o pior momento da história brasileira em termos de autoritarismo, sobretudo pela brutalidade da tortura, dos desaparecimentos, e também pela suspensão do habeas corpus e o fechamento do Congresso Nacional.”
Instaura-se um mecanismo de retroalimentação, sublinha Fico: “Os militares diziam que era preciso manter a repressão política por causa das acções armadas; e a esquerda revolucionária justificava a necessidade de pegar em armas por causa do AI-5, que institucionalizou a repressão.”
A escola e a memória
O Exército não aprecia a ser responsabilizado pela tortura. Escreveu o falecido coronel Brilhante Ustra, o mais conhecido torcionário militar: “Em 1964, fomos vencedores quando impedimos que, na marra, fosse implantada uma república sindicalista de cunho marxista-leninista. Contudo, depois dessa primeira vitória, infelizmente perdemos uma batalha muito significativa – a comunicação de massa. Os vencidos distorcem os factos e enganam o povo, principalmente os jovens.”
Infelizmente para Ustra, a historiografia sobre a ditadura é já muito rica e plural. Não é possível apagar os “tempos sombrios”. A exacerbação do debate sobre a ditadura pode vir a ter um efeito de bumerangue sobre o Exército. O seu ex-comandante, general Villas Bôas, reconheceu em 2016: “Nos governos militares nas décadas de 70 e 80, nós cometemos um erro, nós permitimos que a linha da Guerra Fria nos atingisse e o país que vinha num sentido de progresso, perdeu a coesão.”
“Os livros de história que não tragam a verdade sobre 64 precisam ser eliminados”, declarou no ano passado o general Aléssio Ribeiro Souto, responsável pelo programa da Educação de Bolsonaro. Ele não visava os historiadores mas os livros escolares. É na escola que a batalha se vai travar.