Milhões prometidos para limpar florestas nunca chegaram às câmaras
Ao fim de seis meses, dinheiro de linha de crédito do Governo não chegou às autarquias. Muitas não chegaram a fazer a limpeza em substituição dos proprietários por causa deste atraso do Governo.
O Governo prometeu disponibilizar até 50 milhões de euros para financiar a limpeza de terrenos florestais pelas câmaras municipais, mas, mais de meio ano depois de terem encerrado as candidaturas a essa linha de crédito, o dinheiro ainda não chegou às autarquias. Por causa dos atrasos, muitas delas acabaram mesmo por desistir de fazer esse trabalho. Agora, foram surpreendidas com pedidos de reembolso das despesas. Não eram essas as regras com as quais contavam.
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O Governo prometeu disponibilizar até 50 milhões de euros para financiar a limpeza de terrenos florestais pelas câmaras municipais, mas, mais de meio ano depois de terem encerrado as candidaturas a essa linha de crédito, o dinheiro ainda não chegou às autarquias. Por causa dos atrasos, muitas delas acabaram mesmo por desistir de fazer esse trabalho. Agora, foram surpreendidas com pedidos de reembolso das despesas. Não eram essas as regras com as quais contavam.
A Linha de Crédito para Limpeza de Faixas de Gestão de Combustível fazia parte do pacote criado pelo Regime Excepcional das Redes Secundárias de Faixas de Gestão de Combustível, que foi incluído no Orçamento do Estado de 2018 – e novamente no de 2019. As câmaras estão obrigadas a fazer a limpeza dos terrenos privados caso, até ao dia 15 de Março, os seus proprietários não cumpram essa obrigação. Este dinheiro serviria para financiar essas operações, sendo depois devolvido ao Estado num prazo de cinco a dez anos. Com o que os autarcas não estavam a contar é que o processo não andasse para a frente.
“Alguém se distraiu com isto”, acredita o presidente da Câmara Municipal do Sardoal, Miguel Borges, que explica a forma como o processo se desenrolou para justificar a sua impressão. Aquela autarquia apresentou a candidatura à linha de crédito em Agosto do ano passado. Pediu 92 mil euros. “Assinámos um protocolo. Iam mandar-nos a minuta de contrato, mas nunca o mandaram”, prossegue o mesmo responsável.
Em Amarante, conta-se uma história semelhante. A câmara – que tinha pedido quase 82 mil euros – não recebeu “até à data” comunicação da atribuição de “qualquer montante” apesar “dos esforços desenvolvidos e das comunicações realizadas”, explica fonte do gabinete do presidente da autarquia, José Luís Gaspar. O atraso na comunicação da aprovação do empréstimo “inviabilizou o procedimento de aquisição nos prazos que estavam definidos” o que impediu aquela câmara de prosseguir com os trabalhos de limpeza dos terrenos.
Tal como Amarante, várias câmaras que se tinham candidatado a receber verbas ao abrigo da Linha de Crédito para Limpeza de Faixas de Gestão de Combustível acabaram por desistir do processo. Foi o caso de Arganil. “Desistimos. Não havia empresas com capacidade para executar o trabalho e a burocracia com esta linha era demasiado grande, porque tinha que passar pelo Tribunal de Contas. Além disso, a extensão de terreno é uma brutalidade, não é exequível”, contextualiza Érica Castanheira.
Segundo os autarcas contactados pelo PÚBLICO, era impossível fazer a limpeza dos terrenos sem o dinheiro que devia ser adiantado pelo Governo. “Estamos a substituir-nos ao Estado e não temos orçamento para isso. Não temos muitas receitas”, justifica o autarca do Sardoal, Miguel Borges. Esta câmara também não avançou com a limpeza nos moldes que estavam previstos pela linha de crédito.
De acordo com o Ministério da Administração Interna (MAI), 11 dos 18 municípios que se candidataram à linha de 2018 “não apresentaram qualquer despesa elegível”. Por isso, “não há lugar a qualquer transferência”. Outros três municípios apresentaram os documentos comprovativos e receberão as verbas após a validação pelos serviços. Só nessa altura serão celebrados os contratos. No ano passado, dois municípios já receberam financiamento, informa também o ministério, sem especificar quais.
Só que a forma como os pedidos de apresentação da despesa elegível se processaram apanharam as autarquias de surpresa. No final do mês passado, um email, a que o PÚBLICO teve acesso, remetido pela Direcção-Geral das Autarquias Locais (DGAL), avisava-as de que as verbas que constavam das candidaturas às linhas de crédito só iria ser pagas caso a despesa tivesse sido efectuada. Os autarcas contactados garantem que desconheciam que seria esse o procedimento. “Tendo o município apresentado candidatura, em 2018, à linha de crédito para a manutenção de redes secundárias de faixas de gestão combustível, mas não tendo o contrato de financiamento subjacente sido firmado com a DGTF [Direcção-Geral de Tesouro e Finanças], torna-se necessário aferir da viabilidade da prossecução com a operação em 2019. Para tal, solicita-se que procedam ao reporte das despesas totais, efectuadas até 31 de Dezembro de 2018, e ocorridas neste âmbito”, lê-se.
“Caso o município não tenha efectuado despesa dar-se-á o processo de candidatura por terminado, não havendo lugar à celebração do contrato de financiamento. Caso tenha efectuado despesa elegível, mas a mesma seja em montante inferior ao financiamento solicitado aquando da candidatura, verificar-se-á uma redução de montante equivalente do financiamento a conceder”, avisam.
Algumas fizeram-no. Viana do Castelo, por exemplo, gastou quase 200 mil euros, mas “até ver, não recebeu qualquer pagamento”, avança o gabinete do presidente da câmara, José Maria Costa. O mesmo aconteceu em Baião, que foi contemplado com 31 mil euros, mas ainda não recebeu o dinheiro. No entanto, a maioria das autarquias contactadas pelo PÚBLICO acabaram por não dar seguimento ao processo e não podem agora fazer o pedido do reembolso.
O email da DGAL foi enviado dia 20 de Fevereiro, o mesmo dia em que a Protecção Civil divulgava nas redes sociais um apelo à população: “Já efectuou a limpeza do seu terreno? De norte a sul do país, a GNR já se encontra a identificar terrenos que necessitam de limpeza de matos e vegetação. Limpe os seus terrenos e contribua para a prevenção de incêndios florestais.”
A Câmara Municipal do Sardoal respondeu que “não foi realizada qualquer despesa, em virtude de o município não ter recebido, em tempo oportuno, qualquer informação”. Amarante respondeu nos mesmos termos: “Foi questionado, em tempo oportuno, o ponto de situação da candidatura, tendo sido referido que ainda se encontrava em análise. Assim, na falta de resposta da DGAL, o Município de Amarante viu-se impossibilitado de recorrer a este mecanismo de financiamento.”
Desde o início que o mecanismo de empréstimos não convenceu a maioria dos municípios. Apenas 18 das 308 câmaras apresentaram candidatura a esta linha de crédito, cujas candidaturas terminaram em Setembro de 2018. Foram elas Torres Novas, Vagos, Covilhã, Fundão, Pombal, Valença, Vila Nova de Cerveira, Penalva do Castelo, Baião, Águeda, Cadaval, Penela, Sardoal, Viana do Castelo, Arganil, Sever do Vouga, Amarante e Condeixa-a-Nova. Esta lista foi divulgada pelo Ministério da Administração Interna (MAI) em Outubro do ano passado. O montante total solicitado por essas 18 candidaturas ascendeu a 6.928.478 euros – ou seja, menos de 14% do total de 50 milhões que estava disponível.
Vila Nova de Gaia, que não estava nesta lista inicial, também concorreu com um projecto de 400 mil euros. “Soubemos que fomos seleccionados, mas ainda não recebemos o dinheiro. Fizemos os trabalhos e aguardamos pelo dinheiro”, afirma o presidente da câmara Eduardo Vítor Rodrigues.
Promessa de Capoulas sem efeito
Em Março do ano passado, numa audição na comissão parlamentar de Agricultura e Mar, o ministro da Agricultura e das Florestas, Capoulas Santos, anunciou que nos casos em que os proprietários dos terrenos nos quais as autarquias tivessem tido que fazer limpezas fossem idosos ou tivessem dificuldades financeiras comprovadas, a verba a ser emprestada pela linha de crédito não teria que ser devolvida. Esta era uma solução então defendida pelos municípios junto do Governo
“A medida era muito boa. Mas nunca saiu em papel”, lamenta Miguel Bordes, da câmara do Sardoal. A versão final da lei acabou por não prever este mecanismo. Contactado pelo PÚBLICO, o Ministério da Agricultura remeteu esclarecimentos para o MAI, que é o responsável pela linha de crédito para a limpeza das florestas. A esta questão, o MAI respondeu apenas que os municípios “vão devolvendo o dinheiro na medida em que o vão cobrando aos responsáveis pela gestão do combustível, no prazo de 30 dias após o efectivo recebimento”.