W é uma orquestra robótica que ressuscita o ser humano para ser uma máquina de trabalho
Questionar o que é o trabalho, desde a Revolução Industrial até aos dias de hoje, e de que forma ele transformou o ser humano é a proposta da Sonoscopia e do Teatro de Ferro no concerto-encenado que esta sexta-feira tem estreia no Teatro do Campo Alegre, no Porto.
Num robot não corre sangue nas veias, nem tampouco, entre filamentos e componentes mecânicas, existe espaço para artérias. Não bate um coração, nem há ar que seja respirado ou espaço para emoções que não sejam simuladas por um comando escrito em código de programação. Porém, no centro de uma acção que tem como personagem central uma máquina construída debaixo de pressupostos distantes dos necessários à vida, é ela mesmo que perece, contrariando a ideia de que a robustez desta criação infalível lhe poderia conferir a imortalidade vedada aos humanos.
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Num robot não corre sangue nas veias, nem tampouco, entre filamentos e componentes mecânicas, existe espaço para artérias. Não bate um coração, nem há ar que seja respirado ou espaço para emoções que não sejam simuladas por um comando escrito em código de programação. Porém, no centro de uma acção que tem como personagem central uma máquina construída debaixo de pressupostos distantes dos necessários à vida, é ela mesmo que perece, contrariando a ideia de que a robustez desta criação infalível lhe poderia conferir a imortalidade vedada aos humanos.
Faz-se um elogio fúnebre, musicado em tons negros. No centro da cena, jaz esta peça de criação humana, enquanto no pano de fundo se desenha, aos poucos, um W, símbolo físico do trabalho. É nas linhas que compõem este signo que se desenrola uma acção que remete para uma espécie de génesis com contornos bíblicos. Nasce ali o homem e a mulher, mas aqui enquanto elementos de uma engrenagem maior – o trabalho.
Esta descrição parte de um pedaço da peça W, que a Sonoscopia e o Teatro de Ferro estreiam esta sexta-feira no Teatro do Campo Alegre, no Porto (com repetição amanhã, sempre às 21h). Os responsáveis preferem chamar-lhe concerto-encenado, não fosse esta criação uma extensão do trabalho que a Sonoscopia iniciou há cerca de cinco anos, quando deu à luz a Phobos - Orquestra Robótica Disfuncional, conjunto de pequenos robots e dispositivos de geração automática de música, que aqui são também protagonistas.
O momento descrito anteriormente serve também como metáfora para ilustrar aquilo que o ser humano fez de si mesmo, sobretudo, a partir da Revolução Industrial, na primeira metade do século XIX, ao apoiar-se na máquina para executar o trabalho manual. A partir daí, a humanidade tornou-se também mais mecânica, mais previsível, sem espaço para o erro no que ao trabalho diz respeito.
Se é só nos mitos que se encontra relatos de ressurreições, o robot desta peça volta à “vida”, para que se reflicta sobre a mutação do ser humano até chegar ao momento em que ele se transforma em apenas mais uma peça da máquina do trabalho. Para sobreviver ao processo rotineiro diário de funções mecânicas, o ser humano não tem outro escape se não duplicar-se: humano fora do horário de expediente, robot em horário laboral.
É esta ideia que esta co-produção pretende explorar, alegoricamente, por vezes de forma política, noutras, mais humanista. Tudo isto num ambiente dominado pela máquina, onde sobram alguns resquícios naturais, como plantas, aqui e ali, evidenciando o que ainda nos liga directamente à Terra. Há também o elemento humano, que aqui se junta à orquestra robótica para aproveitar todos os sons que os movimentos de palco originam, nalguns momentos mais maquinais, noutros mais orgânicos e ainda em certas alturas mais caóticos. A voz entre o operático, o quase berrado e o emocional de Adriana Romero, uma dos nove actores/intérpretes em palco, muito contribuiu para isso.
Responsável pela encenação, cenografia e dramaturgia, Igor Gandra (fundador do Teatro Ferro), após um dos ensaios a que o PÚBLICO assistiu, diz que em W tentou construir uma peça que simultaneamente aglutinasse as linguagens que caracterizam as duas entidades envolvidas na produção: a Sonoscopia faz a música, o Teatro do Ferro as marionetas.
A nível de conceito, explora-se “uma jornada” que discorre pela “ideia do que é hoje o trabalho”, levantando questões relativamente à “precariedade” a que muitos estão sujeitos, mas também para questionar os processos “do futuro”. Esteticamente, Igor Gandra optou por passar esta ideia de forma “poética”, recorrendo a acções “abstractas” e com “um sentido mais plástico”.
Já Gustavo Costa (Sonoscopia) – que assina a concepção, gestão, composição, direcção musical e, com Alberto Lopes e Henrique Fernandes, também a construção dos instrumentos – afirma que em discussão estão também as diferenças de tratamento no trabalho, associadas ao género. Sobre a mecanização do trabalho, considera tratar-se de “um mal” que abrangeu quase todas as áreas: “Até os artistas, que são trabalhadores do ócio, acabam por ser obrigados a entrar nesta máquina”.