A ponte de arame que liga duas aldeias vai ficar submersa

A ponte que une as aldeias de Veral, em Boticas, e de Monteiros, em Vila Pouca de Aguiar, vai ficar submersa pela barragem do Alto Tâmega. Os (poucos) habitantes exigem a sua relocalização. Iberdrola garante que acatará decisão que vier a ser tomada pela Agência Portuguesa do Ambiente.

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Inês Fernandes

“Destruir o que está feito é de gente sem consideração”, desabafa a mulher, de negro absoluto, figura franzina apoiada num cajado. Da sua frase ressoa resignação, mais do que a indignação que seria natural a quem arrisca ver desaparecer sob as águas do rio Tâmega a única ponte que liga a aldeia onde nos encontramos, Veral, em Boticas, à de Monteiros, em Vila Pouca de Aguiar. Se, como se teme por estas bandas, a ponte ficar submersa pela construção da barragem do Alto Tâmega, ficam as duas aldeias ainda mais isoladas. Do resto do mundo, mas, sobretudo, uma da outra, que é o mesmo que dizer que, desaparecendo a ponte, desaparecem com ela décadas de entrosamento entre os habitantes dos dois lados do rio Tâmega.

Para a encontrar, à Ponte de Arame, basta exagerar no zoom no Google Maps. Mas é preciso percorrer quilómetros de auto-estrada, atravessar este encavalitamento de casas na encosta sobre o vale do Tâmega e depois arriscar caminhos de pedras onde resvalam as solas para, adiando o esplendor cor-de-rosa das urzes espalhadas a esmo pelos montes, encontrar esta construção de tábuas suspensas por arames. Na aparência, a ponte que ali aparece como tendo sido construída em 1936 e reconstruída em 2006 não deve nada ao imaginário dos filmes do Indiana Jones. Serve, porém, fins bem mais prosaicos: serve, por exemplo, para quem vai de Veral a Monteiros “ganhar a jeira”, ou seja, ganhar o sustento com o trabalho na lavoura.

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“São 20 euros, o meio-dia [de trabalho]. Os ‘de lá’ chamam o pessoal daqui porque lá já não têm quem o faça”, precisa Palmira Alves Gonçalves, uma das cerca de três dezenas de habitantes que ainda restam na aldeia de Veral. Conta Palmira que a Ponte de Arame foi construída no tempo “em que a autoridade era o regedor” para evitar que, no Inverno, a travessia se tivesse de fazer de barco. A primeira versão desta ponte corria rente às águas do rio mas, se acontecia o nível das águas subir, “lá se ia a ponte”, arrastada pela correnteza. E terá sido então que o regedor a decidiu elevar, dando-lhe a forma que perdura até hoje e tornando assim mais seguro o ver-se-te-avias destas gentes sobre o rio (para as desfolhadas, para ir buscar farinha aos moinhos, para a missa, para as festas de Verão ou simplesmente para ir apanhar o autocarro a Monteiros até à feira semanal de Vila Pouca de Aguiar).

Este movimento desacelerou nas últimas décadas, em relação directa com a emigração e com a morte dos mais velhos. Entre os que envelhecem por aqui, como Palmira Gonçalves, que já vai nos 77 anos, as pernas já não aguentam a travessia. Mas o filho que com ela vive, e cuja vida continua a regular-se por modos antigos, continua no vai-e-vem sobre o rio. “Há semanas que vou três e quatro vezes: é um calhar, uma sorte”, conta José Gonçalves, falando de cima de um tractor carregado de estrume, rafeiro enroscado nos pés, agora que o motor parou para satisfazer a curiosidade forasteira.

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José Gonçalves costuma atravessar a ponte para "ir ganhar a geira" em Monteiros INÊS FERNANDES

“Sempre a trabalhar na lavoura"

Demasiado “medorento”, segundo a mãe, para, como os irmãos, arriscar a vida fora, José foi-se deixando ficar em Veral. “Sempre a trabalhar na lavoura. É batatas, milho, feijão… Antigamente sementava-se centeio mas agora já não porque nem as máquinas querem cá vir para o malhar”, descreve de rajada.

A agricultura de subsistência (‘o milho também deixou de haver quem o compre, mas boto-o às vacas e aos bezerros”) complementa-se com o dinheiro ganho nas jeiras. O problema é que, desaparecendo a ponte, a única forma de chegar ao outro lado do rio é percorrendo mais de 50 quilómetros de curvas e contracurvas que, apesar de bem asfaltadas, requerem perícia de Fórmula 1. “De carro, não se ganha para a jeira”, preocupa-se José, para quem o desaparecimento da ponte será a morte das duas aldeias. “A de Monteiros está quase morta, poucos restam, e esta aqui morre também, se assim for”, insiste, lembrando que foi dos primeiros a assinar a petição que por ali correu há anos a pedir a relocalização da ponte em local que permita preservar “a ligação histórica e antropológica” entre as duas populações.

A Palmira preocupa-a ainda mais o facto de, além da ponte, a construção da Barragem do Alto Tâmega, uma das três inseridas no Complexo Hidroeléctrico do Alto Tâmega que a Iberdrola quer ter pronto até 2023, se preparar para submergir os terrenos que possui na borda do rio. A notícia chegou-lhe pelo diz-que-diz da aldeia. “Dizem que eles [Iberdrola] andam a apanhar os terrenos por uma ninharia. Não chega a um euro por metro, mas ainda não sei se é assim se não é”, ressalva a septuagenária, acrescentando ter recebido já uma carta daquela empresa espanhola.

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Palmira Alves Gonçalves, 76 anos, sustenta que a perda dos terrenos a vai forçar a vender o gado INÊS FERNANDES

Três anos de escola (“antigamente não havia empregos como agora, a pedir que se soubesse ler e escrever”) não chegam para decifrar linguagem de engenheiros, pelo que Palmira foi cimentando decisões a partir do que foi ouvindo aos conterrâneos. “Diz que se não assinarmos, eles vão para tribunal. Se assim é, vou assinar porque, se chega ao tribunal, vou gastar lá o pouco dinheiro que me hão-de dar”.

E o pior é que, ficando sem terrenos, Palmira diz que será obrigada a vender o gado. “Tenho um grande lameiro, é fraco porque não é plano, vai daquelas mimosas até à borda do rio, que é onde ponho as vacas. Sem terreno, onde é que as vou pôr a pastar? Tenho que as vender. Vou ficar sem nada”, resigna-se. Quase a despedir-se, deixa respigar alguma indignação:

- Se não pagam os terrenos como deve ser, ao menos deixem lá a ponte. O dinheiro com que nos assaltam nos terrenos deve dar para pagar isso.

Sobre indemnizações, a Iberdrola garantiu que “nas zonas de Veral e Monteiros ainda não foram feitas expropriações”. Logo, “ainda não existe um valor para as indemnizações a aplicar”.

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Quanto à ponte, o presidente de Vila Pouca de Aguiar, Alberto Machado, limitou-se a adiantar que, na quinta-feira, haverá uma reunião com a Comissão de Acompanhamento Ambiental do Sistema Electroprodutor do Tâmega, presidida pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA), onde pedirá, juntamente com o autarca de Boticas, “uma alternativa viável entre as localidades dos dois concelhos”. Isto porque, tendo a travessia pedonal sido considerada uma existência patrimonial, não se enquadra nas contrapartidas dadas aos municípios. Mais assertivo, o autarca de Boticas, Fernando Queiroga, lembra: “Quem vai estragar a ponte é a Iberdrola que julgo que tem a responsabilidade de repor aquilo que estraga.”

A Iberdrola, por seu turno, atira as responsabilidades para a APA, enquanto autoridade nacional responsável pela Avaliação de Impactes Ambientais (AIA) do projecto hidroeléctrico do Tâmega. “Como tem sido seu apanágio durante toda a execução do Sistema Electroprodutor do Tâmega, a Iberdrola garante que cumprirá escrupulosamente as decisões que vierem a ser determinadas pela autoridade de AIA”, respondeu a Iberdrola ao PÚBLICO, confirmando que a ponte foi “caracterizada como elemento patrimonial” e que a APA determinou a sua relocalização, predispondo-se assim a acatar a decisão que vier a ser tomada quanto à sua relocalização.

"Até o lume íamos pedir"

As histórias por detrás desta classificação como “existência patrimonial”, e que dariam só por si para encher uma albufeira, conhece-as Maria Gonçalves como ninguém. Lembra-se, por exemplo, que na casa branca, a algumas passadas do sítio onde conversámos há pouco com Palmira e José, funcionou uma mercearia.

- Era lá que íamos buscar meio quilo de arroz ou um quilo ou meio quartilho de azeite. O merceeiro ia e vinha pela ponte num macho.

- Num?

- Num animal, num burro! Ia a Vila Pouca e trazia de lá a mercearia para pôr na loja – precisa.

Protegida do vento por uma camisola amarela esburacada, saia cor-de-rosa e orelhas esgaçadas pelos brincos de ouro, Maria é, aos 90 anos de idade, a habitante mais velha de Veral.

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Maria Gonçalves, 90 anos, habitante de Veral INÊS FERNANDES

- Era catraia novita e íamos todos para a festa, do lado de lá, em Agosto. A minha mãe também para lá ia, para uns lameiros [terra alagadiça onde cresce pasto]. Uma tia, irmã da minha mãe, casou por lá. E os de Monteiros, dantes, vinham aqui à missa.

A miséria grassava.

- Alembro-me que até o lume íamos pedir a quem nos desse umas brasinhas, porque não tínhamos às vezes dinheiro nem para uma caixa de fósforos.

Mas isso era no tempo em que a Igreja ficava a abarrotar aos domingos. Hoje, o padre vai apenas de 15 em 15 dias celebrar missa e acontece estarem “dois ou três a assistir”, segundo José. A falta da mercearia foi colmatada pelo merceeiro ambulante que passa “a cada oito dias”, segundo Palmira. As escolas também fecharam. Hoje, se calha a Igreja encher é porque morreu alguém.

- Um funeral e vai-se daqui para lá. E os de Monteiros também se juntam aqui - retoma Maria Gonçalves.

Quem arrisca a travessia da ponte para o lado de Monteiros percebe que, do lado de lá do rio, a desolação é ainda mais funda. Uma paisagem semeada de amendoeiras e cerejeiras em flor, bonitos muretes azulados pela sargacinha, e, como banda sonora, balidos de ovelhas e o zurro de um burro. Fora isso, apenas o latido de um cão a acentuar o silêncio de casas fechadas a seguir a casas fechadas. Passa-se o nicho de Santo António alindado com flores de plástico, decerto por não haver quem substitua as naturais que abundam por estes montes, ignora-se uma torneira de uso colectivo onde alguém pendurou um caneco para quem se queira servir, e vai-se dar ao adro da Igreja.

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O abandono é visível na aldeia de Monteiros INÊS FERNANDES

Restaurou a casa do pai

Aqui, o sinal de presença humana é dado pelo placard dedicado aos editais, onde a Iberdrola convoca, “a população interessada” para, no dia 3 de Abril, conhecer o cronograma das obras a realizar nesta zona em 2019. A assistente social Maria Olímpia já aqui não vive: trocou Monteiros por Lisboa. Mas, em podendo, há-de lá ir, ajudar a lutar pela manutenção da Ponte de Arame. “Tenho 72 anos e, desde que me reformei, volto de quinze em quinze dias à aldeia, onde restaurámos a casa que era do meu pai”, situa, numa conversa com o PÚBLICO ao telefone, para confirmar que é uma das pessoas que, a partir de Monteiros, recruta em Veral mão-de-obra “para ajudar nas terras”.

Para Olímpia, o desaparecimento da ponte será sentença de morte para os que se deixaram ficar por estas duas aldeias. “O meu pai chegou ao ir ao programa da Júlia Pinheiro falar desta ponte que foi feita pelo povo. Se a deixam cair, os que estão a regressar - e muitos tinham partido porque a electricidade e a água canalizada chegaram muito tarde - desistem e começa tudo a cair outra vez”.