Uma história da violência
O Resto Já Devem Conhecer do Cinema, do inglês Martin Crimp, é a nova produção do Teatro Nacional São João, encenada a duas mãos por Nuno Carinhas e Fernando Mora Ramos. Mais uma revisita ao teatro clássico tornado espelho do mundo actual. Porque os problemas da humanidade já estavam todos nos mitos gregos.
Quatro jovens mulheres sobem para uma bancada que ocupa grande parte do palco e perguntam: “Onde está o mundo?”; “Deus também é um triângulo?”; “Como é matar?”; “Como é que os mortos podem viver agora?”; “O que é uma esfinge?”... Fazem perguntas e expõem enigmas, mas também dão as deixas – como se de um ponto se tratasse – para as falas das personagens em cena.
É o coro das “fenícias”, as prisioneiras da cidade de Tebas na peça clássica homónima de Eurípides (século V a.C.), e que agora regressa através da escrita de Martin Crimp, em O Resto Já Devem Conhecer do Cinema (2013), que esta quarta-feira – Dia Mundial do Teatro – tem estreia no Teatro Nacional São João (TNSJ), no Porto.
Estas raparigas faladoras, irrequietas e de má índole “são as detentoras da eficácia do drama”, diz ao Ípsilon Nuno Carinhas, que com Fernando Mora Ramos assina esta primeira encenação em Portugal da peça do dramaturgo inglês. “Elas estimulam as personagens a avançarem nas suas narrativas, mas são também elas que às vezes boicotam a sua sequência lógica; estão lá para incomodar, para lançar enigmas, para perguntar”, acrescenta Carinhas, no intervalo de um ensaio, a justificar o papel central deste coro feminino no texto de Martin Crimp.
Só que agora não se trata já das prisioneiras do reino de Tebas, como no tempo de Eurípides. Hoje em dia, esse território remete-nos para países como a Síria e o Líbano, a Palestina e Israel. Ou seja, o teatro grego continua a falar para o nosso tempo, para o nosso mundo. “O Resto Já Devem Conhecer do Cinema é um texto com características muito experimentais, que mistura o mito antigo com a necessidade de mediar a nossa realidade, o mundo global em que vivemos”, diz Fernando Mora Ramos, que partilha com Carinhas a direcção artística desta produção do TNSJ feita em colaboração com o Teatro da Rainha, nas Caldas da Rainha – uma companhia que já encenou Martin Crimp noutras ocasiões, depois de o ensaísta, tradutor e encenador Paulo Eduardo Carvalho (1965-2010) ter chamado a atenção para a relevância da sua obra. “Ele, que era um estudioso do teatro de língua inglesa, falava-nos do Howard Baker, do Brian Friell, mas dizia: ‘Atenção ao Martin Crimp, um rapaz que vem da província, mas que vai dar que falar’”, recorda Mora Ramos.
Depois de O Fim das Possibilidades, de Jean-Pierre Sarrazac, em 2015, é agora a segunda vez que Nuno Carinhas e Fernando Mora Ramos assumem uma aventura conjunta sobre os palcos das duas cidades, numa partilha que vai para além da encenação: o primeiro assina a cenografia e os figurinos e Mora Ramos é também actor (Tirésias). “É um trabalho de construção, como se tivéssemos dois arquitectos a resolver um projecto de arquitectura”, diz Carinhas; é a experiência de “um trabalho coral”, acrescenta Mora Ramos, lembrando a importância desta partilha num mundo que vemos demasiado “virado para o egocentrismo, para a exaltação dos umbigos”.
Do incesto à guerra
Mas regressemos à actualidade do teatro grego clássico. “O Heiner Muller já o dizia em 1980 – lembro-me de o ter lido no L’Unità [jornal italiano de esquerda, que existiu entre 1924-2014]: ‘Os problemas todos da humanidade estão nos mitos gregos’”, diz o actor-encenador do Teatro da Rainha.
As Fenícias, como agora O Resto Já Devem Conhecer do Cinema (a peça foi traduzida por Isabel Lopes), narra uma história de violência monstruosa e irreparável (António Guerreiro escreve sobre isso no sempre incontornável Manual de Leitura com que o TNSJ acompanha as suas produções próprias). Eis a sinopse desta tragédia que é mais uma variação sobre o destino de Édipo: Etéocles e Polinices, dois irmãos filhos daquele e de Jocasta (mãe e filho, separados e anos depois reunidos em matrimónio por um destino trágico anunciado pelo oráculo de Delfos) matam-se no campo de batalha, depois de esboroado o acordo de partilha do governo da cidade. “Nenhum deles tornou mais clara a situação política, mas ambos têm a boca cheia de sangue e pó”, comenta o coro. Jocasta mata-se a seguir, ao ver uma vez mais cumprido o destino traçado pelos deuses. Uma história de violência, que, como sabemos, é o motor da história.
“Podemos assumir a família incestuosa como coisa global – o sangue corre em todas as direcções, mas é o mesmo, pertencemos todos à mesma família. Esta família, a de Tebas, serve de exemplo, vista daqui, da Europa que Cadmo perseguiu”, escreve Nuno Carinhas no Manual de Leitura. António Guerreiro acrescenta que “na peça de Crimp acena-se discretamente, sobre esse fundo de uma violência mítica que a tragédia grega revela, a uma guerra global que se sobrepôs à política e já nada tem que ver com um duelo entre Estados e com decisões soberanas”.
O crítico literário e ensaísta (e colaborador do PÚBLICO) realça que “esta guerra global é hoje feita de atentados, de represálias, de incursões, de operações cirúrgicas, de operações high-tech conduzidas à distância por técnicos especializados”. Uma “guerra total” que já não é apenas “a continuação da política por outros meios”, como a definiu o militar prussiano Von Clausewitz, ou a violência instrumental de que falava Hannah Arendt.
Uma peça no feminino
No palco cru do Teatro São João, praticamente sem cenário além da bancada do coro, os dois encenadores deram todo o espaço ao jogo – extremamente físico – dos actores e à pregnância do texto, numa grande elipse temporal: há militares com camuflados, e Antígona, filha de Édipo e irmã de Etéocles e Polinices, veste uma saia amarela com bolinhas vermelhas…
“Na peça de Eurípides, o mundo é Tebas, mas os problemas que aí existem continuam actuais, e são filtrados no feminino por essa figura do coro”, diz Mora Ramos. Será O Resto Já Devem Conhecer do Cinema uma peça feminista? O encenador admite essa possibilidade: “Não sei se posso dizer isto, ou se alguém me vai bater?...”, graceja. Mas é certamente “uma peça no feminino”. Tanto pelo facto de o coro ser exclusivamente formado por mulheres – no original de Eurípides, o coro é formado por 13 elementos, “algo que não podemos ter aqui, mas funciona perfeitamente com estas quatro”, nota Nuno Carinhas, referindo que as actrizes são ex-alunas da ESMAE [Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo] –, como porque são elas que “comentam, interrogam e fazem a ponta para a actualidade, são uma espécie de voz delegada de todos os problemas do mundo”, acrescenta o encenador do Teatro da Rainha.
A certa altura, um ecrã desce do tecto do palco e dá a ver um excerto do filme Rei Édipo (1967), que Pier Paolo Pasolini realizou com Silvana Mangano, também a partir do mito grego. E o coro pergunta: “Do que é que vocês têm inveja, dos olhos da Silvana Mangano? Do vestido da Silvana Mangano?”; “Porque é que temos vontade de chorar quando vemos a copa das árvores no final do filme do Pasolini?”.
Nuno Carinhas lê as referências de Crimp ao cinema, plasmadas desde logo no título da peça, como “uma espécie de metáfora”. E diz que não é por acaso que o dramaturgo vai buscar o Rei Édipo de Pasolini. “Crimp confronta-nos com esse estado para o qual o cinema nos transporta: Quais são os nossos sentimentos quando olhamos as imagens?”. O encenador vê também nesse jogo de emoções uma chamada de atenção para o contraste entre o teatro e o cinema, e em particular “um cinema que já não existe, como o é o cinema ‘à Pasolini’”.
A acção de O Resto Já Devem Conhecer do Cinema conclui-se, de resto, e uma vez mais, com uma pergunta do coro: “Que filme é esse que continuamente projectas no cinema deserto da minha mente?” Talvez a resposta seja: uma forma de manter o espectador implicado naquilo que acabou de ver. “O Martin Crimp mantém o espectador sempre em jogo, nunca o deixa adormecer”, realça Mora Ramos.
O Resto Já Devem Conhecer do Cinema vai ficar em cena no Porto até 14 de Abril, chegando depois às Caldas da Rainha, ao palco do Centro Cultural e de Congressos, a 24 e 25 de Maio.
No final da récita desta sexta-feira, dia 29, está agendado um debate aberto ao público com a presença da equipa artística da peça, que tem como actores António Parra, Ana Cunha, Carlos Borges, Fábio Costa, Fernando Mora Ramos, Isabel Lopes, Joana Carvalho, João Cardoso, Jorge Mota, Manuel Petiz, Pedro Frias, Sara Barros Leitão e, no coro, Mafalda Taveira, Marta Taveira, Sofia Guimarães e Maria Luís Cardoso.