Ciclone Idai: A vida continua e uma cratera na estrada é negócio
Junto ao buraco de 250 metros onde havia estrada, vendeu-se água para lavar a lama das pernas, inhame, latas de refrigerante. A estrada Beira-Maputo reabriu este domingo, mas é preciso passar lento no atalho de João Segredo – o que dá tempo para comprar qualquer coisa.
Nos dias em que a estrada nacional 6 esteve interrompida, João Segredo revelou-se num bulício a que não estava habituado um lugar que nem sequer é um ponto no mapa. O rio Muda levou a estrada e as poucas casas, deixando uma cratera de 250 metros onde antes havia a única via de ligação entre a Beira e o resto de Moçambique, criando com isso a possibilidade de negócio.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Nos dias em que a estrada nacional 6 esteve interrompida, João Segredo revelou-se num bulício a que não estava habituado um lugar que nem sequer é um ponto no mapa. O rio Muda levou a estrada e as poucas casas, deixando uma cratera de 250 metros onde antes havia a única via de ligação entre a Beira e o resto de Moçambique, criando com isso a possibilidade de negócio.
João Segredo virou praça de chapas, como são conhecidas as carrinhas de transporte em Moçambique, que levavam pessoas da Beira até ao corte de estrada e outras de volta, seguindo as pessoas a pé por trilhas que serpenteiam pela lama negra, calças arregaçadas, sapatos nas mãos. Caminho difícil e sujo, que se transforma por vezes numa luta com lama até aos joelhos. Do lado de lá, há outra praça de táxis, onde se pode continuar o percurso interrompido.
O fluxo constante de pessoas ao longo do dia criou a perspectiva de negócio. Os que viviam nos campos agora alagados da região tentaram - como noutros locais da Beira - tirar alguns trocos da tragédia.
Joana João, de 19 anos, não morava longe, disse, sorriso de adolescente tímido e parco português. Perdeu a casa, “a água levou”. Estava a vender água para lavar os pés e as pernas dos que cruzavam desde o outro lado em direcção à Beira. Trazia o líquido num balde e enchia as garrafas ali mesmo. Cobrava dois meticais pela garrafa de 50 cl, dez meticais pela de 1,5 litros – é quase nada, entre três e sete cêntimos. Mesmo assim, houve quem reclamasse do preço caro.
Ao lado, Fernando Carlitos Mário, 15 anos, (que é de Muda, mas está na escola em Tica) vendia Coca-Cola, Fanta, Frozy e garrafas de 200 ml de gin Royal a 60 meticais (0,85 euros). Foi difícil arrancar-lhe mais do que o negócio “está a correr bem” e a casa perdeu-se com as inundações. Mesmo assim, lá contou que foi para ali, para aquele pedaço de estrada junto à cratera logo a seguir ao ciclone.
E a casa? “Já foi embora”, respondeu Elsa Francisco, 20 anos, que vendia pedaços de inhame cozido por cinco meticais. Estava ali desde sexta-feira e o inhame ia desaparecendo. Vendeu um balde cheio todos os dias e até tinha um garfo para que as pessoas escolham o pedaço que querem comer sem tocar com os dedos nos outros.
A N6 já reabriu, neste domingo, com desvios construídos em tempo recorde ao lado do percurso da estrada que desapareceu ou ficou intransitável. João Segredo, ou Johnny Segredo, como também lhe chamam – o que lembra que Moçambique é uma ilha de língua portuguesa num mar de países anglófilos, o país pertence à Commonwealth desde 1995 – terá de se reinventar em termos de negócio.
O trânsito ficará condicionado, porque não é a mesma coisa a estrada de asfalto novo que existia antes da tragédia e o desvio de terra e pedras compactadas com gravilha por cima que é agora. Os veículos passarão de forma mais lenta e sempre se lhes poderá estender um produto com tempo para mostrar e convencer a comprar.