Um teatro para Jacques Tati

Na Calçada da Ajuda, em Lisboa, um teatro construído no século XIX foi requalificado pelos arquitectos Graça Dias e Egas José Vieira e agora funciona exclusivamente para o público infanto-juvenil. É mais um exemplo do apego que a dupla guarda às formas com que o tempo e os usos vão moldando os edifícios.

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FG+SG/Fernando Guerra

Reinaugurado em Junho de 2018, Lu.Ca - Teatro Luís de Camões é o primeiro espaço teatral vocacionado exclusivamente para a programação infanto-juvenil em Lisboa. É também a mais recente obra pública do escritório Contemporânea, Lda criado em 1989 pelos arquitectos Manuel Graça Dias e Egas José Vieira. A intervenção da dupla permitiu a requalificação deste velho teatro oitocentista dotado de “sala à italiana”, localizado na Calçada da Ajuda. Durante quase todo o século XX foi sede do Belém Clube, colectividade associativa que aí se manteve até ao arranque das obras, em 2015. Trata-se de um pequeno edifício de três portas para a rua, ocupando um lote de 13 metros de frente por 36 de profundidade. A fachada principal, de desenho modesto, inscreve-se na estética neoclássica que a partir da construção do Teatro Nacional D. Maria II, ao Rossio, em 1843, marcou em Portugal este tipo de teatros de modelo italiano.

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A fachada principal, de desenho modesto, inscreve-se na estética neoclássica que a partir da construção do Teatro D. Maria II, ao Rossio, em 1843, marcou em Portugal este tipo de teatros de modelo italiano

O edifício notabilizou-se no imaginário popular por ter sido associado à Casa da Ópera de D. João V, que aqui teria funcionado durante o século XVIII. É um apontamento historiográfico que Manuel Graça Dias acha pouco provável ter acontecido. Os arquitectos preferem remeter o início do edifício para a década de 80 do século XIX, arrolando a sua fundação à iniciativa do comerciante Joaquim Maria Nunes, que desejava lançar-se enquanto empresário teatral, actividade em expansão na transição para o século XX. A sua edificação inseriu-se, portanto, numa linhagem de equipamentos teatrais de pequena dimensão, à escala dos diferentes bairros lisboetas, construídos pela iniciativa privada a partir da segunda metade de Oitocentos. Este surto empreendedor representou a popularização do acesso ao teatro, transformando-o numa actividade de forte componente lúdica e com dinâmicas próprias de captação de público urbano. Um sintoma da nova sociedade de consumo que já se antecipava durante o século XIX. Correspondeu igualmente a um período de profissionalização da gestão destes espaços, que passaram a ser dirigidos por empresários privados que tinham como objectivo imediato a sua exploração comercial. Não parece, contudo, que o seu fundador tenha sido bem-sucedido nos seus propósitos empresariais, como prova o arrendamento ao Belém Clube logo após a instauração da I República. No entanto, o Teatro Luís de Camões permaneceria na família Peyssoneau Nunes até aos anos 50 e só em 1967 a Câmara Municipal de Lisboa passaria a ser sua proprietária.

Ao longo da sua história, o Teatro Luís de Camões sofreu obras várias de requalificação, conservação e por vezes até de modernização estética – como aconteceria nos anos 30 do século passado em que ganhou uma configuração mais ao gosto Art Déco, muito em voga na época. Datavam deste período, por exemplo, os módulos que revestiam o tecto da sala principal e que seriam removidos na actual requalificação por ocultarem a estrutura original. Estas intervenções, feitas com poucos recursos económicos e técnicos, foram, entretanto, empobrecendo o edifício. Não apenas plástica mas também funcionalmente. Quando em 2012, os Serviços de Reabilitação Urbana da Câmara Municipal de Lisboa lançaram o Concurso por Convites para a sua requalificação – concurso esse que o escritório Contemporânea haveria de vencer –, muitos dos elementos oitocentistas que caracterizavam o edifício primitivo encontravam-se comprometidos por obras posteriores. Parte do programa que compunha o caderno de encargos do concurso privilegiava exactamente a revalorização desse período histórico aliada aos recursos técnicos contemporâneos que hoje estão disponíveis para as artes cénicas. Algumas garantias de segurança – que o velho edifício não oferecia – eram igualmente exigidas.

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A forte presença da cor, a reparação de lambris e madeiras, o reforço dos elementos arquitectónicos constituem um conjunto de intervenções que fortaleceram o carácter cenográfico da sala de espectáculos FG+SG/Fernando Guerra
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Apesar de traçarem princípios orientadores muito claros para a intervenção, apoiando-se na hipótese de recuperação da autenticidade do edifício original, Manuel Graça Dias e Egas José Vieira propuseram uma abordagem aberta, interpretando a requalificação como um work in progress. Existiam indícios de que talvez, sob as camadas dos períodos mais recentes, fosse possível resgatar elementos mais próximos da ambiência oitocentista preexistente. Notícias recolhidas em jornais dos anos 20, por exemplo, davam conta de alegorias e figuras mitológicas que teriam composto o tecto primitivo da sala de espectáculos e cujas pinturas seriam de facto encontradas após a eliminação da mencionada intervenção Art Déco. A remoção de outras adições, designadamente as que se repercutiam em interiores demasiado compartimentados, permitiriam alcançar maior fluidez e muito provavelmente refazer o espírito festivo que estes equipamentos promoviam no século XIX, quando funcionavam mais como lugares de convivialidade do que de montagem de espectáculos.

Genericamente, a proposta de requalificação incidia sobre as três principais áreas do teatro: o foyer e as zonas de circulação vertical, a sala de espectáculos, composta por plateia e caixa de palco, e o volume novo formado por camarins e serviços anexos. Para a primeira área, o objectivo da proposta constituía em optimizar o acesso e a circulação do público, desobstruindo o espaço dos seus obstáculos. As três portas de acesso à Calçada da Ajuda foram franqueadas e refeitas nas suas dimensões iniciais, tornando o passeio parte integrante do cerimonial de entrada. As escadarias que conduziam aos camarotes do segundo piso surgem agora visíveis e o espaço do foyer respira através da replicação dos arcos abatidos (anteriormente vãos de portas e agora abertos e recompostos) e da comunicação com o andar superior, onde se localiza o bar e um segundo foyer. A sala de espectáculos, com capacidade máxima para 150 espectadores, recuperou a espacialidade que caracteriza a estrutura à italiana, com forte demarcação entre plateia e palco e assegurando a melhor visibilidade possível, independentemente da localização do espectador. Os camarotes – agora sem portas – contribuem para a circulação continua e fluida. A forte presença da cor, a reparação de lambris e madeiras, o reforço dos elementos arquitectónicos constituem um conjunto de intervenções que fortaleceram o carácter cenográfico da sala, a que não faltaria a reforma do “camarote real” forrado a papel adamascado vermelho. Algumas alterações, como a supressão dos camarotes no piso térreo, permitiram a introdução de saídas de emergência compatíveis com as actuais exigências de segurança. Novas funcionalidades da caixa de palco exigiram a sua reconfiguração e o aumento do volume em dois metros de altura, de nove para onze, ainda que sem repercussões visuais para o exterior do lote. Por fim, o corpo de camarins erguido no logradouro do lote completou o processo de renovação, destacando-se pela sua linguagem contemporânea. A introdução de uma nova paleta de cores, em contraste com a anterior a 2012, designadamente o uso do vermelho forte, quer nos interiores quer na fachada principal, recriou uma solenidade facilmente associada à vivência destes espaços. Na fachada principal, a escolha de um tom escuro de vermelho foi justificada com a necessidade de introdução de um elemento contrastante face às pilastras e frisos que recortam os vãos, recuperando a imagem original do teatro. A decisão seria tomada com base em iconografia antiga recolhida durante a fase da pesquisa. O regresso a uma atmosfera oitocentista manteve-se assim como linha estruturante de toda a intervenção, tal como era solicitado na encomenda. O desenho, todavia, não se apoiou numa lógica de reconstituição, mas construiu-se a partir de pequenos indícios: um revestimento de forte presença, frisos e pilastras manipulados, arcos recriados (partindo de elementos preexistentes, numa prática de reconstrução “emprestada” de Fernando Távora que permite intensificar uma qualidade cenográfica). Tratou-se de refazer uma ambiência histórica credível através da construção de uma narrativa espacial, sem necessariamente recorrer a um historicismo figurativo óbvio ou a uma reconstituição positivista e literal.

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Tratou-se de refazer uma ambiência histórica credível através da construção de uma narrativa espacial, sem recorrer a um historicismo figurativo óbvio ou a uma reconstituição positivista e literal FG+SG/Fernando Guerra
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Como forma de preparação para a intervenção, os arquitectos haveriam de realizar um levantamento fotográfico registando os diferentes aspectos do edifício quando funcionava ainda como sede do Belém Clube. Algumas dessas imagens, captadas ainda em 2012, revelavam um espaço gradualmente mais desfigurado e em processo de obsolescência. É possível que algumas das idiossincrasias desse espaço tivessem despertado a atenção dos arquitectos, como se percebe pelo tratamento de alguns elementos. Seria o caso da preservação das escadas originais – inoperacionais e por isso sob a nova estrutura – ou da existência de óculos de geometrias disformes nas paredes do foyer do segundo piso, abrindo vistas perspectivadas sobre algumas das áreas de circulação. É bem conhecido o apego que Manuel Graça Dias e Egas José Vieira guardam às formas com que o tempo e os usos vão moldando os edifícios, principalmente quando revelam soluções singulares e criativas, um pouco ao jeito do filme Mon Oncle de Jacques Tati (1958) que parodiava o excesso de positivismo da cultura moderna. A arquitectura que têm praticado ao longo destes anos tem recriado a mesma capacidade de invenção que não se traduz em fórmulas mediatizadas mas persegue uma certa narrativa do quotidiano, promovendo interstícios que são espaços sobrantes desenhados pelo bem-estar, como na casa orgânica de M. Hulot, o tio do pequeno Gérard Arpel no filme de Tati de que Graça Dias é um confesso cultor. A arquitectura singelamente neoclássica do Teatro Luís de Camões surge valorizada por uma intervenção que não procura sobrepor-se ou encenar o que não é, mas que “lê” a escala do edifício preexistente, a sua singeleza, o seu papel no contexto urbano específico do bairro da Ajuda – um bairro historicamente de origem operária. Há uma coerência que tem atravessado os projectos do escritório precisamente nessa capacidade em perscrutarem o contexto de um modo bem menos rotineiro do que a cultura portuguesa tem promovido, apostando em gestos de um realismo mais orgânico. Foi assim com o excepcional Teatro Azul – calibrado para a suburbanidade de Almada – onde foram capazes de inscrever na cultura portuguesa um modelo de abordagem aos programas teatrais. É assim no Teatro Luís de Camões, onde perceberam de forma adequada – nem mais, nem menos – a condição de teatro de bairro. Ao teatro Lu.Ca – que ganharia este nome posteriormente ao projecto de reabilitação como forma de captação de um público juvenil – acabaria todavia por ser solicitado um outro papel, mais central, concentrando em si o essencial da programação infantil da cidade em substituição de outros espaços, designadamente do Teatro Maria Matos. A esta alteração de significado resistiu bem o teatro, escapando a ser associado à miniaturização do edifício-teatro, categoria em que facilmente poderia ter caído, dada a sua reduzida dimensão. Esse facto é um resultado da requalificação conduzida por Graça Dias/Egas Vieira, suportada por um discurso acertado na escala e ajustado na expressão plástica. Sem cederem à tentação de manter todas as idiossincrasias que o Teatro Luís de Camões foi tomando ao longo do seu tempo de vida, os arquitectos conseguiram organizar racionalmente o espaço e simultaneamente preservar a condição orgânica de obra originalmente concebida entre a razão e o absurdo. É um equilíbrio difícil, mas para o qual Manuel Graça Dias e Egas José Vieira têm especial aptidão. Como se disse antes, um pouco na esteira de Jacques Tati.