Madalena e Giacomo agarram o ar

Mergulham numa paisagem e envolvem-se com as comunidades locais. Os espectáculos esgotam. Nesta temporada, andam pelo ar, entre o fogo e o (des)equilíbrio. Chama-se Lavrar o Mar o projecto em que, depois de deixar o Todos, Madalena Victorino e Giacomo Scalisi têm vindo a trabalhar na costa vicentina.

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Cena 1, Marmelete, 16 de Março. O grupo segue, quase em silêncio, pelas ruas desertas da aldeia de Marmelete, próximo de Aljezur. Algures, na mesma aldeia, outro grupo faz outro percurso. Por vezes, uma porta ou uma janela entreabrem-se e algum morador espreita, curioso.

Nas mãos, os caminhantes de ambos os grupos, que hão-de cruzar-se a meio caminho, levam um copinho para beber medronho. A primeira paragem é num antigo lagar, há muito sem uso, onde, à luz das velas, as velhas máquinas de extrair o sumo das azeitonas projectam sombras misteriosas. No meio deste cenário, uma voz, de uma actriz, conta a história do Carlos, “a quem chamavam Urso”, o rapaz que parecia não ter medo do fogo.

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Medronho #2, teatro nas destilarias. Com direcção artística de Giacomo Scalise e textos de Afonso Cruz, aconteceu em Marmelete, aldeia na sserra, entre 14 e 17 de Março e repete entre 21 e 24, às 20h João Mariano

A peça é Medronho #2, de Giacomo Scalisi e faz parte do projecto Lavrar o Mar, que Giacomo e Madalena Victorino criaram há três anos na Costa Vicentina e em que, para estes primeiros meses de 2019, toda a programação é inspirada pelo ar. Houve em Fevereiro um primeiro espectáculo, Eva Poro #1, de Madalena Victorino e Joana Guerra sobre as coisas que se evaporam e agora, na criação de Marmelete, o ar torna-se mais denso e transporta a memória dos fogos que arrasaram a zona de Monchique no Verão passado.

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Eva Poro #1 no Monte Paraíso, perto da Bordeira, espectáculo apenas com homens e rapazes, aconteceu em Fevereiro. Eva Poro #2 acontece a 17, 18, 19 e 31 de Maio, e 1 e 2 de Junho em Monchique e Alzejur e tem apenas mulheres e raparigas. Com encenação de Madalena Victorino e música de Joana Guerra, ocupa locais abandonados, instalando-se no “espaço indecifrável do que se esfumou” João Mariano

Desde Janeiro que o Ípsilon começou a acompanhar alguns momentos do projecto de Madalena e Giacomo para perceber como é que a dupla formada pela coreógrafa e o programador – e que desde 2009 esteve, com Miguel Abreu, à frente do Festival Todos – Caminhada de Culturas, em Lisboa, do qual entretanto se desligou – está agora a trabalhar na costa vicentina.

O método tem semelhanças: tudo parte da realidade que os rodeia, cada peça é feita com as comunidades locais (o mesmo que fizeram com o Todos em diferentes bairros lisboetas) e cada uma está ligada a um espaço – aqui, na costa, sobretudo a uma paisagem. Estamos em Marmelete precisamente por ser zona de destilarias de medronho. É disso que se quer falar: o fruto, e da bebida que com ele se faz, do peso cultural que aqui tem, do que representa para quem vive na serra, do seu renascimento nos últimos anos e do medo de que, de um momento para o outro, possa desaparecer.

Giacomo Scalisi conta que este projecto vai já no terceiro ano, numa cumplicidade com dois escritores, Sandro William Junqueira e Afonso Cruz, que estiveram na serra a ouvir histórias de homens e mulheres, e que têm escrito textos para serem representados nas destilarias. Em Novembro, aconteceu Medronho #1, em Monchique, e aí, o que se pretendia que fosse um trabalho sobre as três fases do medronho – a apanha, a fermentação e a destila – transformou-se noutra coisa.

O impacto do fogo tinha sido de tal maneira devastador para a paisagem e para as pessoas que os textos não podiam ignorar isso. Sandro voltou a pegar no seu “Romeu e Julieta monchiquense”, com a história dos Capotes e dos Monteiros, e Afonso Cruz, no texto que ouvimos em Marmelete pela voz de duas actrizes, Marta Gorgulho e Neusa Dias, para falar da violência doméstica e da infância de Carlos, o rapaz que todos acreditavam que não tinha medo do fogo.

Aqui em Marmelete, ao contrário de Monchique, o incêndio não chegou. Mas nada é garantido. “Bebemos?”, lançam-nos as actrizes quando nos sentamos nas pequenas mesas montadas em cada uma das duas destilarias. Bebemos, sim, “enquanto há”, porque não sabemos se para o ano volta a haver. Aprendemos em Monchique que o fogo pode levar o medronho e com ele levar tudo o que tem valor na vida destas pessoas.

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Medronho #2 João Mariano

Bebemos, por isso, e comemos farinheira de Monchique e javali enquanto ouvimos os homens da serra, Rui Duarte da destilaria Quinta Velha, e José Miguel Maria, do Maria’s, a descrever o processo. Umas horas antes, tínhamos passado pelas destilarias quando eles estavam a preparar tudo. “Já pus o medronho na caldeira”, explicava-nos José Maria, enquanto colocava mais lenha para a “caldeirada”.

Lá dentro, os frutos iam cozendo, e, quando a entrada do pote ficou quente, ele colocou a cabeça para que a destilação começasse. Daí a pouco anunciou: “Já há fio”. O líquido (o primeiro que sai, com um nível alcoólico elevadíssimo, não pode ser usado) começa a correr, em fio, para um recipiente de barro. “É a música do medronho”, hão-de dizer as actrizes durante o espectáculo, quando o som for pano de fundo para a história escrita por Afonso Cruz.

Nós, espectadores, ficamos apenas um pouco em cada destilaria durante a noite do espectáculo, mas os destiladores passam horas todos os dias, durante a época da destila, a ouvir a “música do medronho”, a alimentar o fogo, a vigiar o fio. “Faço isto desde puto”, conta José Maria. “Desde os oito anos que via o meu pai fazer, levávamos-lhe o farnel num burro, porque ele ficava a semana inteira no campo a trabalhar”. “Ele pegou-me o vício, isto nasce com a gente.”

Na destilaria dos irmãos Duarte, Rui e Filipe, reunimo-nos a conversar também umas horas antes de o espectáculo. Connosco estão as duas actrizes, que também vão fazendo perguntas, e daí a pouco chega Marta Martins, a jovem presidente da Junta de Freguesia de Marmelete, entusiasta da divulgação do medronho como forma de atrair mais pessoas à aldeia – onde já existe a Casa do Medronho, com provas e explicações sobre o fruto e a sua transformação em aguardente.

Não é fácil manter os jovens por aqui, diz Marta. Houve uma “moda” que levou muita gente para Portimão, confirma Rui. Ele e o irmão (que vive fora mas trabalha em Marmelete) são dos que quiseram continuar o trabalho do pai e não desistiram do medronho, apesar de, dizem, este ser muito menos rentável do que a floresta, em particular o eucalipto, que nas últimas décadas ganhou muito terreno aos medronheiros (a recente recuperação destes é ainda tímida).

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Eva Poro #1 João Mariano

O teatro tem procurado ajudar e, a pouco e pouco, vai despertando também a curiosidade dos locais. Estes, contam as duas actrizes, Marta e Neusa, têm uma relação com a peça diferente do resto do público, até porque este espectáculo, por exemplo, permite-lhes entrar em locais há muitos anos fechados – o velho lagar ou a antiga Casa do Povo, onde muitos ainda se lembram de ter participado em festas e até em encontros de campanha eleitoral.

Filipe sorri quando lhe perguntamos o que pensa do teatro. Vai buscar uma melosa (licor de medronho com mel) e confessa que no início teve dúvidas. Os dois irmãos sentem que o espaço da destilaria não está preparado para ser cenário de um espectáculo e preocupam-se em criar boa impressão em quem os visita. Giacomo, que tem estado a ouvir a conversa, intervém suavemente: “Foi uma aproximação lenta que tivemos. O Filipe ao princípio estava reservado. E para nós também não é fácil entrar num mundo que não é no nosso.”

E, no entanto, é isso que Giacomo e Madalena fazem, espectáculo após espectáculo. Mergulham no mundo que está à volta, abrem-se ao que os outros, os locais, lhes contam e lhes mostram, e devolvem-no em forma de poesia. É difícil encontrar um melhor exemplo disso do que o espectáculo Eva Poro. Mudemos então de cenário.

Os gestos e as pessoas que se evaporam

Cena 2, Monte Paraíso, 8 de Fevereiro. Deixamos o carro na aldeia da Bordeira e avançamos pela estrada de terra. Dependendo do ritmo, podemos ter 15, 20 minutos de caminho pela frente, por entre montes, prados verdes, pequenos riachos quase secos. O destino é o Monte Paraíso, uma casa abandonada no cimo de um monte. Cruzamo-nos com uma manada de vacas e com os seus guardadores – que iremos encontrar mais tarde na peça Eva Poro, criação em que, pelo som e o movimento na paisagem, Madalena Victorino reflecte sobre “os fenómenos do desaparecimento, da evaporação e do fim das coisas”.

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Medronho #2 João Mariano

Homens e rapazes (há um segundo momento, Eva Poro #2, em Monchique e Aljezur, só com mulheres e meninas), casacos e camisas sobrepostos, algo entre mosqueteiros e Peter Pans, já habitam o monte quando lá chegamos. De baixo, de onde estamos, vemos as ruínas e um cavalo branco recortado contra o céu.

A primeira vez que chegamos assim ao Monte Paraíso, vamos para assistir a um ensaio. Subimos, com algum esforço, os últimos metros que nos separam do topo. Sobre uma estrutura de pedra, Joana Guerra, a criadora da música, toca violoncelo. Madalena ensaia a coreografia com os homens e os rapazes. Gestos, sons, um poema que se constrói na paisagem, com a colaboração de todos. E um cão que, entre o surpreendido e o pachorrento, assiste.

Ideias que surgem, umas que se abandonam, outras que ficam. A peça vai nascendo. “O Emílio está óptimo. Aquela perna do Ismael pode ir mais para trás”, diz Madalena. “A ideia é ficar suspenso, como se estivéssemos a cair a céu aberto.” E depois em inglês, “I’m falling from the sky”. É preciso ir dando as instruções em português, inglês e alemão, porque os actores/músicos/bailarinos (entre profissionais e amadores) são de diferentes nacionalidades.

O que Madalena quis foi juntar crianças de vários universos da zona, desde a escola pública às escolas internacionais, passando pelos meninos que têm sistemas de ensino alternativos, em escolas que funcionam nas casas de família ou nas comunidades espalhadas pela serra. “O que eu queria mesmo era que eles se encontrassem, dançassem e imaginassem estas coisas todas em conjunto”, diz Madalena. A dificuldade maior surgiu com a escola pública de Marmelete, da qual veio apenas uma criança, mas os meninos das escolas mais alternativas aderiram com entusiasmo.

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Eva Poro #1 João Mariano

Às crianças juntam-se artistas que já têm trabalhado com o Lavrar o Mar e outros, como Nicolau da Costa, arquitecto paisagista, pastor de transumância, apanhador de percebes, apicultor e conhecedor da natureza, em geral. “O Nicolau vai mostrar-vos os gestos do trabalho”, anuncia Madalena.

Num dos momentos da peça, os homens movem-se no meio da paisagem, repetindo gestos esquecidos: semear, plantar, ceifar. Os braços erguem-se e baixam, os corpos movem-se sempre à beira do desequilíbrio, Nicolau mostra, os outros seguem-no. São, explica Madalena, gestos que “já não servem, já não têm utilidade, mas cuja memória ainda está em nós, mais nuns do que noutros”.

Eva Poro é sobre essas coisas que se evaporaram, os gestos, mas também as pessoas – e o Monte Paraíso, com a sua casa meio em ruínas, é testemunha habitualmente silenciosa disso. Madalena fala das pessoas que ali terão vivido, das crianças que um dia terão ali brincado e eles sussurram junto às paredes, como se tentassem comunicar com esses fantasmas.

Mais tarde, na estreia da peça, iremos conhecer Margarida Alves, a proprietária, que nos conta como “há 50 anos [o monte] ainda era produtivo”, havia trigo, milho, e “sempre uma família que residia aqui”. Agora, restam os pastores, o sr. Valentim pai e o filho, e as suas vacas, que estranham a música que por estes dias se espalha pelo monte.

Na estreia, os pastores já estão integrados na peça e juntam-se a Nicolau, mas também a Nídia Barata, que trouxe as éguas Zayna e Rayna e os cães que a seguem para todo o lado. Dentro do estábulo de paredes de adobe rasgadas por raios de sol, Joana encontra um lugar para se sentar e tocar o violoncelo, enquanto as crianças imitam os gestos de Nicolau, ouvem falar das abelhas e, por fim, adormecem no meio do feno, as palhinhas douradas a enfiarem-se entre os cabelos.

No final, há suspiros de açúcar que parecem nuvens e que chegam até nós em tabuleiros que são espelhos e, por isso, reflectem o céu, as verdadeiras nuvens, os nossos rostos e os nossos olhares, que se cruzam, enquanto os suspiros-nuvem se desfazem em mil migalhas brancas.

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A funambulista francesa Tatiana Mosio Bogonga, da Cie. Basinga, durante um workshop com crianças e cadetes dos bombeiros de Aljezur. No dia 21, Tatiana apresenta o espectáculo Grande Travessia, percorrendo o fio entre duas colinas, com músicos de sopro a dar o “chão” sonoro João Mariano

Mais perto do céu

Cena 3, Aljezur, novamente 16 de Março. Há um ajuntamento perto do quartel dos bombeiros. A funambulista francesa Tatiana Mosio Bongonga, da companhia Basinga, está a dar um workshop ensinando aos cadetes dos bombeiros e a algumas outras crianças e pais como se anda em cima de um fio. Aqui, caminha-se no ar mas a poucos centímetros do chão, garantindo o equilíbrio com a vara que se segura nas mãos.

No dia 21, ela vai fazer um percurso no ar, sobre o fio, mais perto do céu e contra a paisagem da costa vicentina. Em baixo, no solo, músicos, coordenados por Remi Gallet, vão-lhe oferecer “um chão sonoro”, apenas com instrumentos de sopro. Até lá, ela partilha o que sabe com quem quer aprender – porque este é também um dos objectivos do Lavrar o Mar.

Conclusão. Madalena, um dia em conversa no Monte Paraíso: “Somos muito felizes aqui, é um território magnífico, misterioso, muito diferente do Portugal que eu conhecia. Há aqui pessoas de todo o mundo a viver num registo que não é usual.”

Giacomo, durante um almoço em Aljezur: “Sempre quisemos fazer um projecto aqui mas não foi fácil chegar ao ponto de termos as condições económicas e políticas.” Neste momento, elas estão reunidas – os apoios para o Lavrar o Mar vêm do Programa 365 Algarve, do Portugal 2020- CRESC Algarve, da Direcção Geral das Artes e dos Municípios de Aljezur e de Monchique.

Depois, não sabiam qual seria a reacção do público. “Existe aqui uma população muito fragmentada, com grandes comunidades alemã, inglesa, francesa – a alemã, sobretudo, tem uma força enorme”, diz Giacomo. A estes somam-se os jovens que deixaram a cidade e mudaram de vida, alguns de forma mais tradicional, outros mais alternativa, e que vivem nas muitas comunidades religiosas, dos Hare Krishna aos budistas. E, por fim, existe a população local. O Lavrar o Mar quer chegar a todas elas.

“Toda esta população era para nós um desafio, sobretudo conseguir ligá-la a partir de um projecto artístico”, confessa o programador. Mas o facto é que os espectáculos esgotam, há pessoas que regressam uma e outra vez – o Medronho, por exemplo, já se transformou numa espécie de “novela monchiquense”, com vários capítulos.

Eles, encenadores e programadores, vão também respondendo ao que sentem ser a sensibilidade do território e dos que o habitam. Quando o tema fogo se impôs como uma evidência em todas as conversas que tiveram com os produtores de medronho da zona de Monchique, entenderam imediatamente que o espectáculo tinha que reflectir isso.

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Dancing! No final de Novembro e início de Dezembro, o Lavrar o Mar juntou-se ao Festival da Batata Doce de Alzejur para apresentar no Rojil um espectáculo que foi também a estreia da Orquestra Vicentina. Receitas de diferentes países com batata-doce num baile culinário João Mariano

“Sinto que aquilo que há de mais valioso na vida são as pessoas e esta relação entre as pessoas e a natureza”, diz Madalena. “Aqui temos a possibilidade de viver num paraíso e ao mesmo tempo fazer projectos artísticos, que são o que gostamos de fazer, e viver esta possibilidade de ter um tempo diferente”. Apesar de manterem uma casa em Lisboa, passam muito tempo aqui e é neste trabalho que investem a maior parte da energia.

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Para os espectáculos Mar Adentro, que aconteceram em Março e Abril de 2018 nas piscinas municipais de Aljezur e Monchique, o público só podia entrar se usasse fato-de-banho, touca, chinelos e levasse uma toalha ou um roupão João Mariano

“Temos trabalhado com o mais variado tipo de pessoas”, continua Madalena. Com os destiladores de medronho, por exemplo: “Vem o Afonso Cruz, conhece-os, conversam, destilam, bebem e comem até altas horas, e ele e o Sandro escrevem aquelas ficções incríveis e as pessoas, quando as ouvem, sabem que lá estão dentro e ao mesmo tempo não percebem como é que aquele texto tão maravilhoso aparece ali”. Isso abre “uma possibilidade de lhes mostrar arte a partir dessa lógica de proximidade, do que lhes é familiar”.

Este é um território do qual muita coisa já desapareceu. Desapareceram a agricultura e as vozes das crianças do Monte Paraíso, desapareceram os jovens da aldeia de Marmelete, desapareceu o medronho levado pelo fogo, desapareceram os gestos dos velhos agricultores.

Madalena e Giacomo acreditam, no entanto, que, tal como os gestos de semear ou de ceifar ainda estão numa memória dos nossos corpos, há muitas outras coisas que se escondem no ar. Cabe-lhes revelá-las, mostrando, às vezes, o mundo ao contrário – o céu reflectido no espelho pousado no chão, as nuvens aos nossos pés, a funambulista que caminha no ar, apoiando-se na música, o medronho que, bebido de um trago, é fogo dentro de nós. É para isso que eles andam por aqui, a lavrar o mar e a agarrar o ar.