Bem-vinda seja a desventura
O segundo álbum esteve para não acontecer, mas os Yak arrancaram ao infortúnio uma intensa colecção de rock’n’roll no fio da navalha, pintado a cores garridas.
A história segue aquela que é uma tradição bem documentada. A saber: banda recebe adiantamento generoso da editora para gravar um álbum, estoira o dinheiro todo em coisas que não a gravação do dito álbum e, quando tudo desaba à sua volta, lá acaba por conseguir, não se sabe bem como, meter-se num estúdio e registar a música que lhe permitirá regressar ao mundo dos (discograficamente) vivos. Esta foi uma história vivida, por exemplo, por Alexander Skip Spence, pelos Happy Mondays ou pelos Death Grips, em tempos diferentes e com contornos diferentes, mas de traços gerais semelhantes, e temos como consequência dela a pérola Oar, clássico de culto, o destravado Yes Please! e o óptimo No Love Deep Web, respectivamente. Podemos agora juntar a essa galeria Pursuit of Momentary Happiness, segundo álbum dos britânicos Yak.
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A história segue aquela que é uma tradição bem documentada. A saber: banda recebe adiantamento generoso da editora para gravar um álbum, estoira o dinheiro todo em coisas que não a gravação do dito álbum e, quando tudo desaba à sua volta, lá acaba por conseguir, não se sabe bem como, meter-se num estúdio e registar a música que lhe permitirá regressar ao mundo dos (discograficamente) vivos. Esta foi uma história vivida, por exemplo, por Alexander Skip Spence, pelos Happy Mondays ou pelos Death Grips, em tempos diferentes e com contornos diferentes, mas de traços gerais semelhantes, e temos como consequência dela a pérola Oar, clássico de culto, o destravado Yes Please! e o óptimo No Love Deep Web, respectivamente. Podemos agora juntar a essa galeria Pursuit of Momentary Happiness, segundo álbum dos britânicos Yak.
Alas Salvation, a estreia do trio, editada em 2016, foi justamente elogiada pelo rock’n’roll no fio da navalha, todo ele zumbido de feedback, baixo pulsante e voz carregada de urgência. Depois dele, depois dos excessos em digressão, fizeram-se planos para que um segundo álbum começasse a germinar. Passavam por uma temporada no Japão, ou talvez fosse melhor viajar até à Austrália e tocar à porta dos amigos Tame Impala. Ano e meio depois, não havia álbum, não havia dinheiro e também já não havia baixista — Andy Jones mudar-se-ia mesmo para a Austrália, mas para viver descansado a nova vida de casado. De regresso ao Reino Unido, falido, o vocalista, guitarrista e compositor Oliver Henry Burslem deu por si, depois da efémera glória rock’n’roll dos anos anteriores, a viver numa carrinha. Isso, porém, não foi o fim: “And I’ve been scorned and I’ve been bruised/ And I’ve been told I’m going to lose/ but I’ll just keep on keeping on”, grita Burslem, voz distorcida e reverberante, alimentado pela voodoo blues da guitarra, pela linha tensa de baixo e por todo o ruído de origem incerta em que se banha a canção. Layin it on the line, assim se chama a canção, é a penúltima de Pursuit of Momentary Happiness. Quando chegamos a ela, há muito não temos dúvidas: os Yak continuaram realmente e não queremos saber se Burslem já arranjou casa em que morar. Interessa que tenham gravado o raio do disco, porque o raio do disco é muito bom.
Aconteceu que os Yak tiveram ajuda de pesos pesados, na figura de Jason Pierce, o mestre J Spacemen dos Spiritualized, e de Jack White, o clássico moderno dos finados White Stripes, e Oli Burslem e o baterista Elliot Rawson puderam por fim, com novo baixista (Vincent Davies), gravar o álbum que não nasceu entre Tóquio e Perth como inicialmente planeado. E que álbum gravaram eles. Engana-nos com dez segundos de flauta Jethro Tulliana e, a partir daí, nesse Bellyache que abre o álbum com wah-wah incandescente a alumiar o tom blasé niilista do vocalista, segue desde onde Alas Salvation nos tinha deixado. Como novidade, a utilização ocasional de secção de metais (catarse free-jazz em turbilhão punk no final de Pay off vs the struggle), o uso do piano como instrumento mais percussivo que melódico (conferir Fried) e o prazer descoberto em planares psicadélicos (mas é space-rock que não se entrega muito tempo à serena contemplação: no tema título, não tardaremos a ser sacudidos violentamente e tudo corre rápido à nossa volta e a guitarra ruge como propulsor de foguetão).
A intensidade é a mesma de anteriormente, mas, porventura pela influência de Jason Pierce, habilíssimo criador de cenografia sonora, verte-se agora em música menos crua, feita de outra densidade. Burslem diz “I’m gonna stop when I colapse” e o fuzz do baixo, que nos impele ao movimento a que se chama habitualmente dança, e a guitarra que se derrama sobre o groove como matéria viva, fervilhante, confirma que não está mentir — isso é a supracitada Fried. Em White male carnivore, por sua vez, não se canta verdadeiramente. É música cuspida, são riffs cheios e ameaçadores a lançar desprezo sobre o privilegiado descerebrado que dá título à canção, o pobre coitado que tem “the whole word in his hands”.
Entre motorika em velocidade furiosa (a já citada Pay off vs the struggle) e punk colorido a cores garridas, capazes de encandear quem ouve (“Kick him in the face!”, grita Blinded by the lies), há espaço para respirar mais pausadamente quando o furacão sónico dá lugar a calmaria decadente e Oli Burslem encarna a sua melhor versão de Jarvis Cocker, em pele de crooner de cabaret infecto (Words fail me, Encore). Tudo reunido, e com Jason Pierce a oferecer a sua guitarra slide a The house has no no living room, a longa e etérea despedida em modo blue eyed soul, só nos resta agradecer a desventura. Tudo certo, se dela resultarem álbuns como este Pursuit of Momentary Happiness.