A Crimeia cinco anos depois da anexação
Por mais que a Rússia tente desinformar leitores menos atentos e distorcer os factos com artigos sem teor fundamentado, a verdade é que a Crimeia é Ucrânia!
Sobre o artigo de opinião do embaixador da Federação Russa em Portugal, Mikhail Kamynin, há que referir várias incongruências e deturpação de factos. Começando pelo título, “O povo que regressou a casa”, não se entende a que povo se refere, mas certamente não deverá ser ao povo russo; quando se diz “a Crimeia é o seu povo” só pode estar a referir-se aos tártaros da Crimeia, o povo nativo, o qual, por sua vez, está neste momento a ser novamente expulso da sua terra e é alvo de repressões e perseguições.
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Sobre o artigo de opinião do embaixador da Federação Russa em Portugal, Mikhail Kamynin, há que referir várias incongruências e deturpação de factos. Começando pelo título, “O povo que regressou a casa”, não se entende a que povo se refere, mas certamente não deverá ser ao povo russo; quando se diz “a Crimeia é o seu povo” só pode estar a referir-se aos tártaros da Crimeia, o povo nativo, o qual, por sua vez, está neste momento a ser novamente expulso da sua terra e é alvo de repressões e perseguições.
O artigo evoca convenientemente comentários de cidadãos que residem em Portugal, mas não dos cidadãos que vivem actualmente na Crimeia. Nem refere que, desde 2014, a Rússia já fez mais de 70 prisioneiros políticos, ativistas da Crimeia que estão atrás das grades por pronunciar a sua vontade pró-ucraniana, entre eles o conhecido cineasta Sentsov, por exemplo.
Também é interessante que no referido artigo se faça alusão ao “antigo palácio de Bakhchisaray, único no género”. A este propósito, numa visita a Portugal, em abril de 2018, para participar na conferência internacional na Reitoria da Universidade de Lisboa, a ex-diretora do palácio de Khan em Bakhchisaray, Elmira Ablyalimova, mostrou, com evidências fotográficas e com pareceres de arqueólogos, que o governo ocupante russo está a destruir o valor histórico e cultural do palácio, sob o pretexto de “obras de remodelação”.
Mais, fala-se no artigo que a Ucrânia tentou impedir o ensino do russo, faltando provas de tal acusação, mas não refere que na Crimeia ora ocupada se eliminou totalmente o ucraniano como unidade curricular nas universidades, nem que os professores foram proibidos de falar ucraniano.
Há também incongruências ao referir que em 1783 a Crimeia se tornou parte da Rússia. Note-se que não se tornou parte da Rússia, mas sim do Império Russo. Império este, agora tão louvado neste artigo, que foi destituído pelos bolcheviques, que assassinaram a família real em 1917. E já que falamos em crime, não esqueçamos que, em maio de 1944, Moscovo realizou uma operação criminal em larga escala destinada a limpar totalmente a Crimeia do povo indígena e a substituí-lo por russos étnicos (que afirmam agora que a Crimeia é o seu povo). Moscovo sempre impediu os tártaros da Crimeia de retornar à sua terra natal, cuja repatriação em massa começou já depois da proclamação da independência da Ucrânia. A própria Ucrânia assumiu todas as despesas neste processo. Em 2013, 266 mil tártaros retornaram à Pátria, o que representou 13,7% da população da península, segundo os dados oficiais.
De seguida, a “ponte da Crimeia” é evocada no artigo, mas novamente nada é dito sobre a ilegalidade da sua construção e utilização.
Ora, é também irónico que se refira às visitas de “parlamentares europeus e eurodeputados” para “avaliar a situação na península com os seus próprios olhos”, mas não se refira às equipas de monitorização de paz da ONU e aos seus relatórios oficias sobre a situação dos direitos humanos na península, nem à Resolução oficial da AE da ONU sobre a “Situação dos Direitos Humanos na República Autónoma da Crimeia e na Cidade de Sevastopol, Ucrânia”. A estes documentos e avaliações oficiais internacionais e imparciais da situação na península, o autor do artigo chama “informação falsa propagada no Ocidente”.
Por fim, e de novo citando as palavras do artigo de opinião “mentira é sempre uma mentira, em geral e em pormenores, até à última gota” – nesse mesmo penúltimo parágrafo, salientem-se duas deturpações (ou, a bem dizer, mentiras). Primeiro, afirma-se que a Crimeia permaneceu na Ucrânia de 1991 a 2013. Ora, como se pode constatar em qualquer fonte histórica, a Crimeia faz parte da Ucrânia desde 1954. É necessário também recordar que em 1918 a República Popular da Ucrânia proclamou a sua independência, a qual foi suprimida pelos bolcheviques posteriormente. E naquela altura a península estava integrada na Ucrânia. Portanto, em 2014 a Rússia capturou-a pela segunda vez. Depois, não se entende ao que se refere o ano 2013, pois a invasão militar russa deu-se em fevereiro de 2014.
A Crimeia pertence, hoje, jurídica e legalmente, à Ucrânia, sendo a anexação ilegal russa considerada oficialmente uma violação das normas internacionais, pela qual a Rússia está a ser penalizada com sanções pela Comunidade Internacional.
É certo que, conforme o “acordo interestatal Rússia-Ucrânia sobre as deslocações da Marinha Russa no Mar Negro no território da Crimeia”, as forças militares russas estavam já no território ucraniano. Pois, e não esqueçamos que também lá estavam quando, em novembro de 2018, dispararam sobre os navios ucranianos que passavam por águas internacionais do Mar Negro, ferindo e fazendo refém a sua tripulação. Estas ações russas constituem uma violação flagrante da Carta da ONU e da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar.
Não podemos deixar de concordar que o povo da Crimeia deve exercer o seu direito legítimo de determinar “livre e democraticamente” o seu próprio destino; para tal, deve haver um referendo livre, monitorizado internacionalmente, e não sob a mira das armas russas, como aconteceu com o anterior referendo, que, já agora, não é oficialmente reconhecido.
Por mais que a Rússia tente desinformar leitores menos atentos e distorcer os factos com artigos sem teor fundamentado, a verdade – e a verdade é sempre verdade “em geral e em pormenores, até à última gota” – é que a Crimeia é Ucrânia!
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico