“Sou trineta da escravatura, bisneta da mestiçagem, neta da independência e filha da diáspora”
Em Essa Dama Bate Bué Yara Monteiro aborda o colonialismo, retrata as mulheres que combateram na guerra e critica a Luanda cosmopolita e a vida das elites. É o romance de estreia da autora.
Vitória Queiroz da Fonseca não é Yara Monteiro. Mas é mulher e é negra como ela. As duas nasceram no Huambo, com um ano de diferença: a primeira, em 1978, é a personagem principal de Essa Dama Bate Bué (Guerra e Paz); a segunda, em 1979, é a autora do romance.
Filha de uma combatente da guerra e revolucionária da independência em Angola, Vitória é uma jovem que regressa a Luanda num périplo em busca da mãe. Essa é a narrativa central de Essa Dama Bate Bué. Mas o romance desenha-se ainda no confronto com um ambiente que para a personagem é familiar e estranho ao mesmo tempo, acabando por ser uma espécie de viagem de iniciação que a irá envolver com a parte da história do país que se confunde com a sua.
A Luanda que a personagem central descreve terá diferenças com a actual, sobretudo porque o tempo do romance está situado no início dos anos 2000, pouco depois do fim da guerra civil em 2002. Estamos em pleno período de reconstrução e início do florescimento económico de um país onde o fosso económico e social entre a elite e a maioria da população está mais do que documentado.
Vitória anda pelo mundo da juventude urbana de elite que estuda no estrangeiro, pelas organizações não-governamentais, pelas discotecas e bares, pelas ruas caóticas de trânsito onde as zungueiras vendem o que podem e os meninos andam de mão esticada sem terem o que comer; anda, enfim, pelo caos de uma cidade desigual. Observa-a com “os clichés de quem visita Luanda pela primeira vez”, como diz a páginas 111.
O fito é sempre o mesmo, conhecer a mãe que a abandonou. Para isso terá a ajuda de um general, Zacarias Vindu, e da companheira de armas da mãe, Juliana Tijamba.
Vitória é também a neta de um homem assimilado que se considera “acima de tudo português”. E quando vai em busca da sua origem confronta-se também com a memória de facções opostas na família e sobretudo de uma mãe — Rosa Chitula — que, quando se insurge contra o colonialismo, está a afrontar o pai. Rosa Chitula irá ser uma das mulheres angolanas que foi para a frente da luta de libertação e da guerra civil. A dada altura engravida, regressa a casa dos pais ao fim de 15 anos de andar desaparecida, mas fá-lo apenas para deixar a filha Vitória — e nunca mais a ver.
Presença decisiva no romance, sobretudo pelo que representa na dicotomia entre poder colonial-país ocupado, é ainda o avó, um homem mestiço que acabava por “trabalhar” para os dois lados, descreve a neta Vitória, narradora na primeira pessoa até determinada altura do romance. “A cor do meio colocara-o num mundo intermédio. Para uns não era negro o suficiente e, para outros, precisava de aclarar a pele”.
As inquietações com a negritude
Essa Dama Bate Bué ficciona uma história como tantas que existiram na vida real. Com uma escrita fluída e descritiva, a autora criou um romance que também poderia ser um guião de cinema. É a estreia de Yara Monteiro, que veio para Portugal ainda bebé, cresceu no Seixal e hoje vive no Alentejo.
O retrato da Angola pós-colonial e do pós-guerra que está em Essa Dama Bate Bué — de resto, o título vem de um rap que ela própria escreveu e que é uma homenagem a Luanda — não nasce, de resto, da literatura mas da sua experiência, das idas frequentes ao país para visitar o pai e de um período em que viveu na capital durante cinco anos, em meados de 2000. Era a altura do boom das indústrias petrolíferas e Yara Monteiro trabalhava em gestão de recursos humanos numa dessas empresas.
“Não sou a Vitória, mas estou em muito da Vitória, nomeadamente no percurso da memória familiar das três gerações”, diz na cafetaria da Sociedade de Geografia de Lisboa, o lugar onde escolheu para fazer a entrevista por causa do universo que aborda, o colonialismo. A verdade é que há cruzamentos biográficos entre a escritora e a personagem.
Mulheres na luta armada
Yara Monteiro começou a escrever o livro em 2016 numa altura em que as suas inquietações tinham a ver com “a negritude, com ser-se mulher, com o posicionamento na sociedade”. Já tinha vivido em vários países antes de se instalar de novo em Portugal — Copenhaga, Atenas, Rio de Janeiro, Londres — e foi no Brasil que encontrou os movimentos sociais de afirmação com que se identificou, foi lá que se deu o “despertar” da sua negritude.
Num dos posts da sua conta de Instagram, a dada altura Yara Monteiro escreveu: “Sou trineta da escravatura, bisneta da mestiçagem, neta da independência e filha da diáspora”.
De facto, durante “a caminhada” que fez para escrever o livro foi descobrindo muita coisa sobre a sua família e ouvindo histórias contadas pela avó materna de mais de 80 anos. Explica alguma parte daquela frase: a trisavó angolana foi comprada duas vezes, a última pelo trisavô português que depois acabou por arranjar uma outra mulher; a bisavô foi forçada a casar com o bisavô, que conheceu no dia que a foram buscar a casa.
A mestiçagem é, de facto, um tópico presente no livro, questão por vezes complexa de discutir. Yara Monteiro: “Eu sei onde me situar. Onde é que os outros me situam? Isto é mutável de acordo com a localização onde estou. Mas decidi que a minha identidade é negra.”
A questão deve ser levantada, refere, porque a “a sociedade e a caixa da identidade o pedem”. Assim como devem ser levantados outros temas que têm sido esquecidos e que ela aborda no livro, afirma. Por exemplo: a participação das mulheres na luta armada angolana. Porque para a autora era importante abordar as condições das mulheres de diferentes pontos de vista.
Yara Monteiro leu Combater Duas Vezes, de Margarida Paredes, e aquele livro-investigação sobre as mulheres na luta armada angolana inspirou-a a criar a figura da mãe de Vitória. “Era uma história que queria que fosse contada e celebrada porque houve o reconhecimento para os generais — e há o general Zacarias no livro — mas muitas mulheres não foram reconhecidas”, afirma.
Fascinou-a particularmente a combatente Carlota (que foi retratada pelo jornalista polaco Ryszard Kapuscinski), por causa da sua “capacidade de luta, da independência, da definição de prioridades” de quem é colocada pela sociedade como “biologicamente feita para procriar” mas que não precisa de o ser.
Vitória é de resto uma mulher lésbica, o que foi importante para si como mais outra tentativa de quebrar tabus. “Tentei abordar muita da discriminação que existe contra as mulheres angolanas. Só agora é que Angola discriminalizou as relações homossexuais”, afirma.
Mas o romance é também uma crítica à Luanda actual, não apenas aos angolanos. Yara Monteiro faz uma retrato do mundo das organizações não-governamentais e dos expatriados, a “abusos de poder da condição de privilegiado” de quem chega a um país e tira vantagem da miséria social e económica.
Houve, de resto, muitos aspectos sobre os quais só tomou consciência depois de sair de Angola. Por exemplo: “Hoje acho inadmissível pagar 200 dólares a uma empregada doméstica”, é a perpetuação de um “sistema de escravatura”, diz. “O que é que vão fazer com 200 dólares? O que é que não está bem? Habituamo-nos à pobreza, mas temos que questionar”.
Entre o antigo o novo presidente, entre José Eduardo dos Santos e João Lourenço, entre os anos em que lá esteve e o presente, muito mudou. A economia retraiu-se, a falta de dólares é uma realidade, a cidade está deprimida, as pessoas têm mais consciência social e com o novo presidente “acabou muita da impunidade”, considera. “A elite também era corrupta, toda a gente tinha uma tia na Sonangol, no Governo. Hoje acho que há maior consciência de que o povo não pode sofrer como está a sofrer”.
Sem formação em Literatura, descreve a sua escrita como “intuitiva”. É fã do escritor norte-americano Paul Auster, e conta que só mais recentemente é que entrou no universo dos autores afro-americanos — Tony Morrisson e Maya Angelou são as leituras mais recentes. Mas sente grande influência de autores latino-americanos como Gabriel García Marquez e Isabel Allende.
Djaimilia Pereira de Almeida, Kalaf Epalanga e Telma Tvon são escritores que, como ela, pertencem a uma geração que nasceu em Angola mas veio viver para Portugal. Com percursos diferentes, fazem, porém, parte da mesma “maka (problema) e alegria”, diz. “Somos afrodescendentes que tocamos nos mesmos pontos da identidade, da vivência em Portugal, dos desafios de um africano.”
Já no final, explica sobre o título: “O bué foi das primeiras palavras angolanas a entrar no dicionário de português. E eu gosto do bué: é levar a margem para o centro.”