Jordan Peele quer fazer género, mas...
Existem filmes que marcam sobremaneira o momento em que são feitos: Foge, em 2017, foi um desses títulos, um filme de género inteligente que, ao pôr o dedo na ferida da raça na América moderna, se tornou num pára-raios sobre o “estado da nação” após a eleição de Donald Trump. Mas o raio não cai duas vezes no mesmo sítio: a espontaneidade de, e a reacção inesperada a, Foge não podem ser repetidas. E tudo em Nós dá a entender que Jordan Peele, de novo realizador e argumentista, está a fazer-se ao estatuto de pára-raios que Foge teve sem o esperar.
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Existem filmes que marcam sobremaneira o momento em que são feitos: Foge, em 2017, foi um desses títulos, um filme de género inteligente que, ao pôr o dedo na ferida da raça na América moderna, se tornou num pára-raios sobre o “estado da nação” após a eleição de Donald Trump. Mas o raio não cai duas vezes no mesmo sítio: a espontaneidade de, e a reacção inesperada a, Foge não podem ser repetidas. E tudo em Nós dá a entender que Jordan Peele, de novo realizador e argumentista, está a fazer-se ao estatuto de pára-raios que Foge teve sem o esperar.
Não faltam ideias a Peele, algumas delas muito boas. A sua história de uma família média americana, confrontada com os alter egos subterrâneos que se erguem da escuridão para ocupar o seu lugar, começa por ser contada como um filme de home invasion que traz volta na ponta. Os seus vilões, duplos, doppelgängers, gémeos enjaulados em subterrâneos, somos nós também, são o nosso “lado escuro”, os nossos eus mais profundos, cansados de estarem nas sombras e querendo ascender à vida que lhes foi até agora negada.
Ficávamos bem assim, mas Peele não resiste, relança constantemente o filme — injectando-lhe ideias, situações, alegorias paranóicas que remetem ora para os clássicos do pós-Segunda Guerra (o Beijo Fatal de Aldrich, A Terra em Perigo de Siegel) ora para as conspirações dos anos 1970 (voltamos às Mulheres Perfeitas de Forbes, que já inspiravam Foge, e a O Mundo do Oeste de Crichton). E o que há de bom em Nós — desde a entrega de Lupita Nyong’o à segurança com que Peele filma e pensa — acaba submergido num turbilhão sisudo de ideias sobre classe (onde Foge era sobre a raça) que nunca coalescem num todo consistente.
Mais grave: com tanta alegoria subliminar (os duplos, a que o filme chama Os Ligados, tanto podem representar os emigrantes usados e descartados como a América de classe trabalhadora deixada para trás pelas elites), Peele parece esquecer-se que está a fazer um filme de género. Nós tanto quer ser um filme de terror que acaba por não meter medo nenhum. Fala-se muito de Hitchcock, mas Jordan Peele é capaz de estar mais próximo de M. Night Shyamalan — cineasta talentoso que se perdeu por entre a adulação (Nós seria, então, o seu Protegido). Será talvez cedo para o dizer; mas a certeza, para já, é que Nós não é outro Foge.