Porque é que o ciclone Idai foi tão destrutivo?

O PÚBLICO falou com dois especialistas que explicam as razões que estão na origem da catástrofe que assolou Moçambique, o Zimbabwe e o Malawi.

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O ciclone Idai em Moçambique LUSA/NASA WORLDVIEW / HANDOUT

O ciclone Idai já provocou pelo menos 242 mortos em Moçambique, segundo o último balanço desta quinta-feira, mas o Presidente moçambicano fala na possibilidade de se registarem mais de mil óbitos.

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O ciclone Idai já provocou pelo menos 242 mortos em Moçambique, segundo o último balanço desta quinta-feira, mas o Presidente moçambicano fala na possibilidade de se registarem mais de mil óbitos.

Em termos de área, o território inundado em Moçambique equivale a 15 vezes a área de Lisboa – pelo menos 1276 quilómetros quadrados nas províncias de Sofala, Manica e Zambézia. De acordo com a Cruz Vermelha, 90% da cidade da Beira foi afectada ou destruída pela passagem do Idai na passada quinta-feira. 

O fenómeno que atingiu também o Zimbabwe e o Malawi pode ser mesmo a “pior tempestade de sempre no Hemisfério Sul”, segundo a ONU. Mas, afinal, o que tornou este ciclone tão destrutivo?

A dimensão que esta catástrofe tomou depende de uma conjugação de vários factores, de acordo com Alfredo Rocha, especialista em meteorologia, oceanografia e geofísica da Universidade de Aveiro. Entre eles estão a intensidade do ciclone Idai, a sua evolução em terra e a forma da zona costeira na cidade da Beira.

“Foi um ciclone com uma intensidade grande, de nível três numa escala de zero a cinco”, começa por explicar ao PÚBLICO Alfredo Rocha. Esta classificação é feita de acordo com a escala de Saffir-Simpson que se baseia na velocidade sustentada dos ventos.

Mas não é só. Os ciclones tropicais, como é o caso do Idai, são tempestades oceânicas, o que significa que “desenvolvem-se no oceano e depois deslocam-se normalmente das latitudes mais baixas para as latitudes mais elevadas”, acrescenta ao PÚBLICO Filipe Duarte Santos, professor do departamento de física da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

Quando este ciclone se deslocou para terra, explica Alfredo Rocha, “esteve durante cinco ou seis dias a mover-se muito pouco e a despejar muita chuva, o que não é normal”, tendo em conta que, regra geral, os ciclones afectam a terra durante dois ou três dias. “Depois, ao mesmo tempo que esteve a despejar chuva, empurrava a água do mar em direcção à costa, o que fazia com que a chuva, uma vez caída em terra, tivesse difícil escoamento em direcção ao mar”, acrescenta.

Estes fenómenos naturais estão associados à sobreelevação do nível do mar (que, no caso do Idai, se estima que tenha sido entre os 2,5 e os 3 metros). Explica Filipe Duarte Santos que “na zona central do ciclone – o olho do furacão – a pressão é muito baixa” enquanto à sua volta a pressão é alta, “de maneira que o mar é sugado dessa zona em que a pressão é baixa, sobe e esta massa de água sobreelevada [que se encontra acima do nível médio do mar], com o movimento do ciclone, avança para terra”.

Assim que o ciclone Idai entrou em terra, a 15 de Março, perdeu força (passando a tempestade tropical) mas continuou a causar chuva muito intensa durante os dias seguintes em Moçambique, no Zimbabwe e no Malawi, levando à acumulação de água e ao aumento dos caudais dos rios. O Idai continuou, assim, “a alimentar as bacias hidrográficas que depois vão intensificar as cheias a jusante desses rios”, explica Alfredo Rocha.

Segundo o especialista da Universidade de Aveiro, “a própria costa em forma de concha naquela zona da Beira contribuiu para que a água do oceano se concentre muito nas zonas costeiras, o que dificulta também o escoamento da água dos rios”. 

Esta é uma situação semelhante à que se verifica no Bangladesh, que se encontra na zona do golfo de Bengala, onde os ciclones têm também “efeitos muito destrutivos”, de acordo com Filipe Duarte Santos. “Os efeitos do ciclone sobre as populações são agravados pela forma da costa porque, sendo em funil, empurra as águas”, explica o professor da Universidade de Lisboa.

“Moçambique tem zonas baixas muito extensas junto à costa, facilmente inundáveis. As pessoas vivem em construções muito precárias e são extremamente vulneráveis a este tipo de eventos extremos”, acrescenta Filipe Duarte Santos.

"Os eventos raros fazem parte da normalidade"

Este não pode ser considerado um fenómeno anormal, visto que “a época dos ciclones naquela região vai de Janeiro a Março e, portanto, quase todos os anos há ciclones”, diz Alfredo Rocha. Porém, o especialista admite que “ciclones com estas características não são muito frequentes”, apesar de sublinhar que “os eventos raros fazem parte da normalidade”.

“Todos estes ciclones formam-se, geralmente, no Oceano Índico, entre Madagáscar e a Austrália. Formam-se e depois deslocam-se quase todos em direcção a Madagáscar”, com alguns a atingirem a costa moçambicana, explica Alfredo Rocha.

Para um ciclone se formar é necessário a temperatura da água do mar estar acima dos 27 graus Celsius, sendo também necessário outras condições, nomeadamente ao nível da distância mínima do Equador (entre cinco e dez graus para Sul e para Norte). “Muito próximo do Equador não há ciclones, porque não há movimento de rotação” na atmosfera e nos oceanos (a chamada Força Coriolis), afirma o professor da Universidade de Aveiro, que nota ainda que “é também necessário que não haja ventos muito intensos na vertical, porque destroem o ciclone”.

Quando a água do oceano se evapora, “essa evaporação entra na atmosfera e sobe um pouco mais, arrefece e condensa”, com o vapor de água a passar de novo ao estado líquido. “Nesse processo liberta-se uma quantidade muito grande de energia, é esse o motor do ciclone”, explica Alfredo Rocha.

É, portanto, a conjugação destes factores, segundo o especialista em meteorologia e oceanografia, “que vão determinar a trajectória e a evolução de um ciclone”, tendo-se reunido as condições para que o Idai estivesse “durante muito tempo próximo de terra”.

Apesar de já ter perdido força, o ciclone Idai continua a ser potencialmente ameaçador, de acordo com Alfredo Rocha, pois “embora os ventos diminuam de intensidade, pode continuar a chover muito intensamente ainda durante muito tempo”, começando-se agora a sentir o efeito dessa precipitação mais na zona de Chimoio (na província de Manica, em Moçambique) e do Zimbabwe.

O papel das alterações climáticas

As alterações climáticas poderão ter também um papel nestes fenómenos naturais. Embora, segundo Alfredo Rocha, não existam estudos que indiquem que as alterações climáticas têm influência directa na ocorrência de ciclones, “há uma tendência para os ciclones intensos se tornarem cada vez mais intensos, exactamente porque a temperatura da água do mar também está a aumentar e com ela a evaporação, que é o motor dos ciclones”.

Já Filipe Duarte Santos, que põe a tónica nas alterações climáticas, explica que os ciclones de maior intensidade se estão a tornar mais frequentes. “Aparentemente a causa desta maior frequência dos ciclones mais intensos tem a ver com o aumento da temperatura das águas superficiais dos oceanos que, desde o princípio do século XX, foi superior a 1ºC”, nota o especialista.

Apesar de haver registo, segundo Filipe Duarte Santos, de outros ciclones tropicais de grandes dimensões em Moçambique, este terá sido o mais intenso e poderá não ser o único. “É provável que, no futuro, venha a haver mais ciclones deste tipo, com esta categoria elevada, com ventos muito fortes e precipitações muito elevadas a atingir a costa de Moçambique”, explica o cientista da Universidade de Lisboa.

A própria capacidade de adaptação dos países é também uma variável a ter em conta, segundo Filipe Duarte Santos. Por isso, o especialista explica que é necessário as populações construírem, de forma mais sólida, as suas casas e em locais mais elevados “tão longe da costa quanto possível”. Além disso, explica o especialista, é necessário “ajudar através do Banco Mundial, das Nações Unidas, através de financiamentos específicos para adaptação às alterações climáticas”.