Do gabinete para a rua: Serviço Social sem portas
Enquanto considerarmos ser preciso moldar, ao padrão de vida que achamos “correcto”, a vida de quem temos perante nós, continuaremos a abrir um fosso gigante de incompreensão, ausência de comunicação e empatia entre o assistente social e a pessoa ajudada. Hoje, 19 de Março, é o Dia Mundial do Serviço Social.
Lembro-me de aprender na faculdade a importância da posição da secretária e das cadeiras no atendimento social. Lembro-me de debater questões como manter a porta aberta ou fechada durante o mesmo. Aprendizagens essas que se encaixam na visão tradicional de Serviço Social: o de gabinete, dentro de quatro paredes. Uma profissão onde das duas, uma: ou se ajudam os “pobrezinhos” ou se retiram crianças aos pais.
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Lembro-me de aprender na faculdade a importância da posição da secretária e das cadeiras no atendimento social. Lembro-me de debater questões como manter a porta aberta ou fechada durante o mesmo. Aprendizagens essas que se encaixam na visão tradicional de Serviço Social: o de gabinete, dentro de quatro paredes. Uma profissão onde das duas, uma: ou se ajudam os “pobrezinhos” ou se retiram crianças aos pais.
Sou assistente social numa Equipa Técnica de Rua de apoio a pessoas em situação de sem-abrigo e consumidores de substâncias psicoactivas e por aqui a realidade é bem diferente da leccionada na faculdade, da que se vê na televisão e da que se lê nos jornais. Aqui, os atendimentos são feitos no chão da calçada, num descampado, em casas abandonadas, prédios devolutos e até mesmo na entrada de buracos de esgoto. Sabem porquê? Porque é lá que se encontra quem precisa da nossa ajuda, quem não consegue ir até aos serviços tradicionais, com horários fixos e regras rígidas.
Na rua não há cadeiras. Os atendimentos são feitos de pé, de cócoras ou no chão. Tiram-se notas em blocos A5, fazem-se telefonemas debaixo de árvores (quando as há) para fugir aos 40 graus do Verão — em que, depois de uma hora de intervenção, a água já está quente e não temos onde voltar a encher as garrafas tão depressa — e das chuvas num Inverno interminável — em que por mais camadas de roupa que tenhamos todas tendem a ficar molhadas. Carrega-se, na sola dos sapatos, lama que traz agarrada a si o lixo e os materiais de consumo que todos os dias nos entram pelos olhos dentro. O cheiro de quem não tem acesso a um banho quente há meses, o aspecto das feridas abertas e os olhos de sofrimento de quem as carrega. As histórias de quem esteve muitos anos preso, de quem dormiu décadas na rua, de quem já tentou e vai tentando pôr fim a uma vida sem sentido. Mas estamos lá porque quem precisa também está.
Idealmente, toda a intervenção em Serviço Social deveria ser centrada na pessoa que temos diante nós, sem nunca perder o foco do que ela pretende (mais do que aquilo que nós eventualmente pudéssemos preferir que ela pretendesse). Enquanto considerarmos ser preciso moldar, ao padrão de vida que achamos “correcto”, a vida de quem temos perante nós, continuaremos a abrir um fosso gigante de incompreensão, ausência de comunicação e empatia entre o assistente social e a pessoa ajudada.
O empowerment do qual tanto se fala na academia só irá ocorrer quando olharmos efectivamente para os sujeitos como pessoas capazes de melhorar as situações em que se encontram, através da construção de projectos de vidas criados pelos próprios e sem imposições, para que possamos estar ao lado da pessoa e não contra ela.
Apenas através de uma relação de confiança podemos chegar a quem pretendemos ajudar e só através dessa relação podemos abrir espaço para que os nossos conselhos sejam ouvidos e tidos como pertinentes, necessários e legítimos por quem os recebe. Podemos até acreditar que, por ocuparmos o cargo de assistentes sociais, temos, à partida, legitimidade para tecer opiniões sobre as decisões de vida das pessoas que acompanhamos. Mas a real legitimidade — a que abre margem à nossa eficaz intervenção — é a que nos é conferida pelo próprio sujeito, que a sente como verdadeira; e a essa só chegaremos com o estabelecimento de uma relação de proximidade.
E é nesse sentido que, por aqui, regressando às equipas técnicas de rua, somos nós (profissionais) que saímos do gabinete e vamos ao encontro de quem precisa, deixando cair por terra cargos de doutores e doutoras. Aqui impera a proximidade de sermos tratados(as) e tratarmos pelo nome próprio quem queremos que confie em nós. Confiança, não julgamento, empatia e respeito são pilares-chave na criação de uma relação de proximidade que constitui a base do nosso trabalho. Não julgar o consumo de substâncias psicoactivas, respeitar as decisões da pessoa que temos à nossa frente e o seu tempo de mudança.
Este é o Serviço Social que poucos conhecem, mas que muitos sentem porque chega onde mais ninguém vai.